Exatamente às 16:43 do dia 22 de agosto de 2022, o juiz Leigo Nunes Vieira olhou para a sala 502 do 2º Juizado Especial Cível na cidade de São João do Meriti (RJ) e notou um vácuo: os réus e seus advogados estavam ausentes.
A casa de apostas Betano havia sido citada por e-mail em um processo de Direito do Consumidor e simplesmente enviou uma resposta automática, padrão, igual para todos que a procuram independente de qual assunto seja.
Restaram apenas o magistrado, o autor da ação e seu advogado, como uma partida de futebol na qual uma das equipes não comparece e o árbitro e o outro time ficam a se olhar.
O episódio aconteceu na ação judicial 0804178-20.2022.8.19.0054 (TJ-RJ), um de vários processos de clientes brasileiros que se sentem lesados pela Betano e que buscam seus direitos na Justiça. O cassino online tem apostado todas as suas fichas em uma estratégia que consiste em basicamente ignorar o Poder Judiciário brasileiro.
Como é de praxe no ramo das apostas, a casa costuma sempre ganhar.
As ações de consumidores contra a Betano constam do âmbito do Direito do Consumidor e normalmente são feitas através de Juizados Especiais, que tradicionalmente têm uma tramitação mais rápida e barata. Costuma ser o caminho mais procurado em casos de ações de menor valor do que a Justiça cível, que envolve um processo mais robusto, lento e caro.
O problema, no entanto, é comum a ambas as vias: a Betano não tem uma sede no Brasil, CNPJ ou qualquer representação. Assim, um processo contra ela envolve enviar uma carta rogatória para a ilha europeia de Malta, onde fica a sede da companhia.
Esse procedimento é complexo e os juízes dizem que não pode ser feito via Juizado Especial. Dessa forma, segundo os magistrados dessas unidades, na prática as ações contra a Betano via Juizado Especial se tornam “impossíveis”.
“Celeridade e simplicidade”
Foi assim em um processo no 4º Juizado Especial Cível de Parnamirim (RN). O juiz José Ricardo Dahbar Arbex enfatizou na decisão que o endereço da Kaizen Gaming International LTD, grupo que controla a Betano, é em Malta.
“Assim, para a sua citação deveria ser expedida carta rogatória. Tal procedimento vai de encontro com os princípios norteadores dos Juizados Especiais, quais sejam, celeridade e simplicidade”, disse em decisão de 30 de janeiro deste ano.
O magistrado determinou que o autor da ação apontasse um representante no Brasil ou a extinção do processo ocorreria em dez dias (Processo 0803029-78.2022.8.20.5124 TJ-RN).
Em Maceió, a juíza Sandra Janine Wanderley Cavalcante Maia chegou a mesma conclusão: “Verifica-se que, no presente caso, será necessária a expedição de citação para endereço localizado na Ilha de Malta, cuja dificuldade de efetivação, que deve ocorrer por meio de pedido cooperação internacional, o qual seria encaminhado a autoridade central para posterior envio ao Estado estrangeiro, consubstanciam-se em procedimentos que ferem os princípios da simplicidade e celeridade processual, razão por que se torna impossível o prosseguimento do feito perante os Juizados Especiais”.
A magistrada do 11º Juizado Especial Cível de Maceió optou por extinguir o processo sem análise do mérito (Processo 0701262-95.2022.8.02.0080 TJ-AL).
Na Paraíba, o juiz Adhemar de Paula Leite Ferreira ressaltou a existência de “complexidade do procedimento instrutório. Segundo o documento, as rés possuem domicílio em Malta, país europeu. Todas as etapas do processo terão que ser feitas por carta rogatória, instituto incompatível com o Sistema dos Juizados Especiais”.
Ele complementou afirmando que se tem “como conclusão inescapável, que a inicial apresenta defeito que impede a continuidade da ação”. Por fim, disse que cobrança de dívida ou jogo é um “pedido juridicamente impossível” e que “a complexidade extrema do procedimento” torna o Sistema dos Juizados Especiais Cíveis incompetente para processar e julgar a ação (Processo 0850832-55.2022.8.15.2001 TJ-PB).
Procurada, a Betano enviou uma nota de posicionamento para a reportagem do Portal do Bitcoin: “A Betano esclarece que em virtude da ausência de regulamentação do setor no Brasil, ainda não possui presença oficial e CNPJ em território brasileiro. A empresa acompanha a evolução positiva do tema no país que trará, entre outros benefícios, o respaldo de uma agência regulatória para atuar em favor das casas de apostas e apostadores que se sintam lesados”.
Foro inadequado, afirma advogada
A advogada Renata Abalém, Diretora Jurídica do Instituto de Defesa do Consumidor e do Contribuinte, afirma que as decisões dos juízes estão corretas porque os Juizados não têm estrutura para tais ações.
“A essência da legislação que criou o Juizado de Pequenas Causas foi para resolver conflitos pequenos e simples: uma briga de vizinho, um problema com uma oficina mecânica. O procedimento da carta rogatória demanda tradução e toda uma logística diferente de processos no Brasil”, afirma.
Abalém ressalta que é necessário um laudo, que tem custo e o autor da ação provavelmente não está disposto a pagar.
A especialista afirma que se o consumidor quiser de fato levar o processo para frente, deve entrar com uma ação judicial em um foro civilista.
Perguntada quais os melhores caminhos para o consumidor que quiser buscar o direito no Judiciário, a advogada afirma que pode ser possível uma via que atraia a competência da Justiça Federal.
“Temos o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados. Se a Betano infringiu algum desses regramentos, o autor da ação poderia chamar no processo a Agência de Proteção de Dados como litisconsorte. Nesse caso o processo vai para a Justiça Federal, que trataria desse processo com muito mais facilidade do que a Justiça Estadual”, analisa.
Limbo jurídico para citação em processo
No caso que abre a reportagem (Processo 0804178-20.2022.8.19.0054 TJ-RJ) — o que rendeu o episódio de vácuo no juiz em São João do Meiriti — há um exemplo das dificuldades que cortes brasileiras têm encontrado ao tentar falar com a Betano e a Kaizen.
O juizado enviou de seu endereço ([email protected]) um e-mail para [email protected] e recebeu a seguinte resposta às 16h03 do dia 3 de agosto de 2022 (o original está em inglês, com tradução feita pela reportagem): “Caro remetente, obrigado por entrar em contato com Kaizen Gaming! Seu pedido está anotado ;). Garantiremos que ele seja compartilhado com a Equipe Kaizen apropriada e será revertido para você o mais breve. Atenciosamente”.
A citação da Betano produziu resultado igual (só que nesse caso, original já estava em português): “Obrigado por contactar a Betano. O seu pedido (23702744) foi recebido e processado pelo departamento de Apoio ao Cliente. Para adicionar comentarios, por favor, responda a este email”.
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Neste caso, o consumidor afirma na petição ter colocado R$ 200 na plataforma. Após um determinado tempo jogando e tendo problemas com saques, quis retirar seu saldo, que seria de R$ 290.
Inicialmente a Betano disse que, para conseguir sacar usando o Pix, ele deveria ter feito pelo menos um aporte desse modo. Acontece que o cliente afirma que foi justamente apenas por Pix que colocou dinheiro em sua carteira.
O chat da empresa disse que houve um erro e que ele deveria solicitar o saque via transferência bancária, e que internamente eles mudariam para Pix e tudo se resolveria em uma hora. Ele diz ter feito o que foi pedido, mas o dinheiro nunca caiu.
Houve então nova orientação para que cancelasse o saque e fizesse outra solicitação, o que foi feito e não gerou resultados. Por fim, a Betano cancelou unilateralmente a ordem de saque e a situação ficou por isso.
Conforme mostram os prints da conversa no chat da plataforma, a atendente também disse ao cliente: “Eu vou cobrar quem possa resolver…Eu não consigo fazer muita coisa porque como os documentos são confidenciais por questões de segurança com os clientes, nós do atendimento nem sequer temos acesso a eles”.
“Tem registro no Brasil?”
Em outro processo, que corria na Justiça Estadual do Rio de Janeiro (Processo 0800006-28.2022.8.19.0024 TJ-RJ), o autor da ação desistiu. Primeiro ele informou no processo que desistia de colocar a Kaizen como parte. Depois, foi pedido que ele colocasse outro endereço da Betano para citação e ele não se manifestou.
A juíza Márcia Andrade de Pumar, do Juizado Especial Cível de Itaguaí (RJ), deu o processo por extinto no dia 11 de abril.
Neste caso, o cliente afirma ter feito dois depósitos, um de R$ 100 e outro de R$ 500, mas quando tentou acessar a conta para fazer as apostas, foi bloqueado. Todas as tentativas de acessar a conta por meio do atendimento ao cliente não resolveram o problema.
Quando o cliente resolveu entrar na Justiça, tentou ver com a própria empresa se existia alguma presença no Brasil. O atendimento ao cliente foi enfático nas respostas:
Aposta no Flamengo, contra o coração
Outro caso idêntico está no meio do processo. No 12º Juizado Especial Cível da Regional do Méier (cidade do Rio de Janeiro), no dia 30 de março, a juíza Claudia Cardoso de Menezes emitiu um despacho determinando que a Betano seja intimada (Processo 0800975-39.2023.8.19.0208 TJ-RJ).
Neste caso, o autor da ação afirma que em outubro do ano passado foi atraído para fazer cadastro na plataforma com a propaganda de que a Betano iria dobrar o valor da primeira aposta.
O cliente colocou R$ 150,00 e ficou com R$ 300,00 no caixa. Nesse momento ele deixou a razão falar mais alto que a emoção: “Apesar de o Autor não ser flamenguista, ele tem consciência e é admirador do atual brilhante elenco do clube e apostou nesta instituição na final da Taça Libertadores da América, ocorrida em 29/10/2022”, como diz o processo.
O Flamengo venceu o Athletico Paranaense e se tornou tricampeão da América. O cliente tentou sacar os lucros da aposta, mas nunca obteve êxito. Enviou diversos e-mails, que foram respondidos com mensagens automáticas.
O processo está em aberto. É mais um Juizado Especial Cível que vai tentar achar alguém que possa ser responsabilizado pelas ações da Betano.
Patrocinadora da Copa do Mundo e futebol na Globo
Vale ressaltar que a Betano foi patrocinadora oficial da Copa do Mundo 2022, colocando publicidades nas placas laterais durantes os jogos do torneio esportivo mais importante do mundo.
No Brasil sua presença vem se intensificando. Neste ano está figurando como um dos anunciantes nos jogos de futebol transmitidos pela TV Globo: o bloco Craque do Jogo é patrocinado pela casa de apostas, com o narrador até mesmo citando o nome da companhia e o atleta mostrando o logo da empresa.
Fontes próximas aos principais players do segmento de casas de apostas, também conhecidas como “bets”, estimaram ao Portal do Bitcoin que o mercado de casas de apostas esportivas online movimenta R$ 12 bilhões ao ano.
Governo olha para tributação
O fato não passa desapercebido pelo governo federal. O ministro da Economia, Fernando Haddad, disse que o Estado pretende implementar uma regulamentação e tributação das plataformas.
No dia 1º de março, Fernando Haddad disse em entrevista ao portal UOL que pretende tributar “jogos eletrônicos” como uma maneira de compensar o reajuste da tabela do Imposto de Renda. Não ficou claro se estava falando de cassinos online ou games, mas a agência de notícias Reuters confirmou se tratar de casas de aposta online.
O futuro decreto do governo deve estabelecer que o Ministério da Economia será o responsável por conceder licenças de operação – e que essas outorgas só serão fornecidas para empresas que tenham CNPJ e presença real no Brasil, como não é o caso da Betano no momento.
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