Imagem da matéria: Respondendo à pergunta errada: quando criptoativos são valores mobiliários?
Foto: Shutterstock

A pergunta do título é recorrente em discussões jurídicas. Escrevi um ensaio sobre o tema, publicado em uma coletânea recém-lançada sobre criptoativos, intitulado “Plunct, plact, zum: Tokens, valores mobiliários e a CVM” (editora Quartier Latin), aludindo ao carimbador maluco de Raul Seixas como ilustração do regime de autorização prévia para acesso ao mercado de capitais. Um security token só vai “voar” se for registrado. Ponto final. E quando analisamos um token para saber se é um valor mobiliário (security), formulamos uma resposta para a pergunta errada.

A César o que é de César

Esse debate adota como premissa a utilização de categorias jurídicas pré-existentes para decidir que autoridade estatal será competente para disciplinar e fiscalizar uma atividade econômica. O Banco Central se ocupa de moeda soberana e instituições financeiras. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) cuida de valores mobiliários. A Receita Federal lida com as hipóteses de incidência de tributos federais e assim por diante. Quem vai regular o tema? Outra pergunta também em aberto e igualmente errada.

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Contudo, esse é nosso ponto de partida. No referido artigo, descrevo aspectos relevantes dos casos DAO, Paragon Coin, Munchee, Bomesp/Niobium, ICOnic e Vasco Token, explicitando como o regulador norte-americano e o brasileiro analisaram ofertas de criptoativos consideradas irregulares, além de enumerar diversas stop orders emitidas pela CVM desde 2017, dentre as quais se destaca a emitida para a Atlas Quantum. Em linhas gerais, a análise envolve a resposta às seguintes perguntas:

  1. Há investimento?
  2. Esse investimento é formalizado por um título, ou por um contrato?
  3. O investimento é coletivo?
  4. Alguma forma de remuneração é oferecida aos investidores?
  5. A remuneração oferecida tem origem nos esforços do empreendedor ou de terceiros?
  6. Os títulos ou contratos foram objeto de oferta pública?

As mais difíceis são as questões (4) e (5). A expectativa de remuneração nem sempre é consequência de uma promessa de distribuição de lucros. E essa expectativa decorre do esforço de uma empresa por trás da emissão, denominada de “active participant”, no raciocínio importado pela CVM. Pense, por exemplo, no rendimento obtido por jogadores de Axie Infinity decorrentes das horas dedicadas ao jogo. Ao mesmo tempo, a empresa responsável pela emissão dos NFTs é quem garante a manutenção da narrativa da qual decorre o seu valor. Outro exemplo é a emissão de criptoativos lastreados em ativos do mundo real, como stablecoins ou frações de imóveis. Estaríamos diante de derivativos? Ou de tokens que são, em essência, cotas de fundos de investimento?

Destaco que, nos casos analisados, as declarações constantes no whitepaper ou a eventual designação do criptoativo como utility token pouco importam, pois a análise é feita a partir da essência econômica da operação. Embora a emissão de criptoativos pode ser uma forma interessante de financiar projetos, é necessário cautela para que a oferta não seja considerada irregular, com sua interrupção pelas autoridades e pagamento de multas.

Como superar os efeitos colaterais da regulação atual para fomentar a inovação?

Diversos projetos têm recorrido a contorcionismos criativos para fugir da qualificação jurídica de security token e da eventual punição por oferta irregular. Quase sempre busca-se a captação de recursos de investidores que esperam retornos econômicos decorrentes do esforço de empreendedores da criptoeconomia, um “active participant” responsável pelo sucesso do projeto, tal como denominado pelo regulador norte-americano. Para fugir do regime regulatório tradicional, inviável para projetos nascentes, novos negócios são obstruídos pela incapacidade de adaptação das instituições em ação.

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Dizem que a capacidade de se adaptar é a chave para a evolução. Vivemos hoje o alvorecer da web3 e precisamos fazer a pergunta correta: de qual regulação realmente precisamos? Como proteger investidores e, simultaneamente, evitar custos e exigências nos quais sequer acreditamos e mantemos por medo ou comodidade, abraçando apenas problemas que já conhecemos?

As autoridades podem acreditar que, diante dos escassos recursos públicos, o melhor a fazer é esperar a mania passar, proibir os serviços da criptoeconomia ou exigir autorizações tão demoradas que inviabilizem esses projetos. Sem compreender os benefícios, foca-se nos riscos, criando um risco ainda maior: o de atrasar uma revolução inevitável na infraestrutura tecnológica do mercado financeiro, capaz de concretizar o imperativo de interoperabilidade e corroer monopólios, reduzindo custos e fomentando a inovação.

Risco e retorno: uma equação que vale para investimentos e para a regulação

Enquanto escalamos a montanha errada, gastamos energia para descobrir como os reguladores podem considerar um dado token como valor mobiliário ou não, sendo que, mesmo que um projeto aceite se submeter à regulação vigente, sequer haverá uma exchange de criptoativos ou uma bolsa regulada capazes de acomodar a negociação de um security token.

Em vez disso, deveríamos explorar como o regulador pode facilitar a emissão e a circulação de security tokens, criando um solo fértil para ideias que ainda nem somos capazes de antecipar.

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A experiência nos ajuda a evitar erros do passado e aproveitar os frutos do que já foi construído. A ousadia típica dos jovens, por outro lado, nos permite explorar novas possibilidades, buscar montanhas mais altas. O progresso depende do embate entre aproveitar o que se tem e arriscar.

Normalmente procuramos explicar o desconhecido a partir do que conhecemos, mas, se nos recusarmos a expandir nossa linguagem, limitamos a expansão do nosso universo. Precisamos construir uma nova disciplina jurídica para os security tokens, sua emissão e negociação, em vez de simplesmente tentar encaixá-los na regulação existente.

Se não discutimos os benefícios potenciais, como saberemos se os riscos compensam?

Os derivativos foram o pivô de uma crise financeira que quase destruiu os mercados globais e não foram extintos, eram e continuam sendo regulados. Manias, pânicos e crises se manifestaram no mercado de ações, devidamente regulado.

Criptoativos têm sido e ainda vão ser um instrumento para pirâmides, fraudes, bolhas (veja as chamadas shitcoins) e outros ilícitos. Entretanto, precisamos ser capazes de enxergar além disso para permitir que a web3 e as soluções baseadas na tecnologia blockchain floresçam no Brasil e em qualquer país capaz de, antes de tudo, fazer as perguntas certas.

Sobre o autor

Isac Costa é doutorando (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, além graduado em Engenharia de Computação (ITA). Atuou como Analista de Mercado de Capitais na CVM e hoje é consultor em regulação financeira e professor em cursos de pós-graduação lato sensu e educação executiva.

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