Uma dívida de mais de 2 mil Bitcoins, equivalentes a quase R$ 30 milhões, pode causar efeitos catastróficos a uma das maiores exchanges brasileiras: o Mercado Bitcoin. A corretora está respondendo uma ação judicial desde 2015 por conta da perda de milhares de criptomoedas ocorrida em 2013.
A ação foi movida por Thiago de Camargo Martins Cordeiro e seus familiares Conceição Aparecida de Camargo Martins (avó), Dirce Gracy Martins Cordeiro (mãe) e Elisabete Martins (tia). Eles buscam reaver “montante aproximado de 2.246,7811916 Bitcoins”, conforme o processo.
A ação contra Leandro Marciano César, o fundador da corretora, e Mercado Bitcoin se deu por sumiço das criptomoedas investidas no grupo Bitcoin Rain.
Os Bitcoins estavam custodiados no Mercado Bitcoin. Após um ataque ao site, em março de 2013, todas as criptomoedas se perderam.
A corretora, contudo, se defende, por meio de seus advogados, afirmando que o caso é entre Leandro Marciano César e os investidores, uma vez que a atual gestão nada tem a ver com o ocorrido e que a empresa como é hoje foi constituída apenas em maio de 2013.
O Portal do Bitcoin teve acesso aos autos do processo — 1047962-71.2015.8.26.0100 — que se iniciou quando um Bitcoin valia R$ 835, o que é nada comparado a atual cotação que vai além dos R$ 12.000. Os autos possuem mais de 800 páginas que remontam à história do Mercado Bitcoin e, de certo modo, à história do próprio ativo no Brasil.
Entendendo a “logística”
Os autores da ação haviam aberto quatro contas na “Bitcoin Rain”— Grupo de Investimento Bitcoin. Em janeiro de 2013, mais de 2 mil unidades da criptomoeda foram investidas nesse grupo que era administrado por Leandro Marciano César, que na época também era dono do Mercado Bitcoin.
O site que futuramente se tornaria uma das maiores corretoras do país custodiava a carteira dos investimentos aplicados no “Bitcoin Rain”, o que foi comprovado por peritos do Centro Brasileiro de Perícia (CBP).
A perícia foi contrata pelo escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzoff, que representa os autores na ação milionária.
Segundo o laudo, “a cada transferência efetuada, o sistema operado por Leandro César automaticamente reenviava os bitcoins depositados para o endereço 1FuiZdyNvJPy5pPdJMSNSoUhme3D6FmPpp, pertencente à carteira do Mercado Bitcoin”.
Isso fica facilmente visível ao acessar as seis transferências feitas pelos autores nos registros feitos na Blockchain, as quais são: 1CZ8wYNKxXya8h7HBuJUuiWu5nGKQRzX4M; 1H4cHEdCzHvLM53Uaq8T2fbK1Uxcw4Xjb3; 17pEVdxixSWNBD7E9QXYwr4dRwTfgQugQb; 19y6AtGbXn4GwPi9kZj1CKpfAPehNaGzfo; 1LcJ998MAEmMHPAwoaf1h8YpheBK3NddZS; e 1CAcNUd9AQfa57va8Mc9o5CHJkf1C5p5n1.
Apesar de ser uma ação antiga e em caráter de urgência, pelo fato de se ter uma pessoa idosa — avó do Thiago Martins—, ela vem tramitando até hoje na 39ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) sem qualquer decisão de mérito sobre o caso.
A juíza Daniela Pazzeto Meneghine Conceição, responsável pelo caso, negou a antecipação de tutela requerida pelos autores para que o Mercado Bitcoin entregue liminarmente 2 mil Bitcoins sob a seguinte argumentação:
“Observa-se, que os documentos juntados às fls. 192/204 demonstram que as transações ocorridas se deram por meio da ‘Bitcoin Rain’, que não faz parte da lide. Assim, o pedido de antecipação da tutela encontra óbice na ausência de prova inequívoca capaz de convencer quanto à verossimilhança do fato alegado”.
Diante dessa situação os autores resolveram agravar de instrumento a decisão, ou seja, levar para o Tribunal de Justiça de São Paulo a fim de obter essa liminar para ter a garantia das criptomoedas desaparecidas.
Promessas
Thiago de Camargo e os outros autores, que são seus familiares, disseram que foram atraídos pela promessa de ganho fácil. O Bitcoin Rain anunciava alto retorno de investimento.
O grupo era administrado por Leandro Marciano César, que também era sócio nesse período Mercado Bitcoin. César havia anunciado a criação desse grupo em outubro de 2011 com promessas encantadoras de lucro fácil.
Os peritos da CBP afirmaram que Leandro César usava a reputação do Mercado Bitcoin para anunciar esse de grupo investimentos, “prometendo retornos acima de 10% ao mês, pagos em Bitcoin”.
Proibição da CVM
A oferta pública feita pelo Bitcoin Rain chegou a chamar atenção até do órgão regulador do mercado de capitais em julho de 2012. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) proibiu a atuação de Leandro Marciano César no mercado por meio da Deliberação 680.
“O Sr. Leandro Marciano César, por não preencher os requisitos previstos na regulamentação da CVM, não pode prestar serviços de administração de valores mobiliários, bem como não pode ofertar publicamente, constituir, nem administrar fundo de investimento ou qualquer outro tipo de investimento em valores mobiliários”.
Essa foi a primeira manifestação da CVM sobre o mercado que envolve criptomoedas .
Bitcoins sumidos
De acordo com a petição apresentada pelos advogados de Thiago Cordeiro, César era quem administrava as contas e por esse motivo, os investidores ‘não poderiam fazer qualquer resgate sem que aquele (Leandro César) tomasse as providências necessárias para tanto”.
O investimento estava dando retorno até fevereiro. O problema todo ocorreu em março de 2013, depois de os autores pedirem a retirada de seus investimentos. César apenas afirmou, por meio de uma postagem feita no fórum https://bitcointalk.org ,que houve falha na segurança do sistema do Mercado Bitcoin.
No dia seguinte — 29 de março—, Ele emitiu uma nota declarando que a “maior parte dos valores do Bitcoinrain estavam em uma conta do Mercado Bitcoin” e que o ataque resultou no desvio de valores suficientes “para comprometer o funcionamento do Mercado Bitcoin e também do Bitcoinrain”.
O laudo pericial relata que “Bitcoin rain” e Mercado Bitcoin eram uma coisa só e que todas as transferências feitas pelos autores passavam pela carteira.
“Chuva” de Bitcoins
Para que o sistema do Bitcoin Rain funcionasse era necessária uma carteira de criptomoedas. Inicialmente, Leandro César “criou um único endereço Bitcoin (13NwrGNidUubhR7vKZRF8fqzKFvHQtcMWP), dentro da própria carteira do Mercado Bitcoin”.
Com esse endereço, César recebia os depósitos feitos ao grupo e também fazia transações entre endereços diferentes na mesma carteira.
Para os peritos isso não havia lógica, salvo se fosse para iludir o investidor.
“Essa transação não faz sentido algum (é o mesmo que abrir uma carteira de dinheiro, retirar uma nota, “pagar” a você mesmo, e recolocar a nota na carteira), a não ser talvez para tentar convencer possíveis investidores de que já haviam sido feitos investimentos no Grupo. Essa hipótese é fortalecida pela presença de outras transações dessa natureza nos dias subsequentes, e ainda outras com valores bem superiores nos meses seguintes.”
O fato é que o endereço 13NwrGNidUubhR7vKZRF8fqzKFvHQtcMWP continuou recebendo depósitos até 24 de Julho de 2012 e nesse período teve o total de 1.635,011 BTC, incluindo os depósito “intra-carteiras”.
Duas semanas depois, César mudou de planos e foi a partir daí que veio a enxurrada de bitcoins. Os novos investidores receberam endereços diferentes para realizar seus depósitos, mas todos esses pertenciam à mesma carteira.
O segredo, contudo, estava na adoção de um processo automático que recolhia regularmente todos os valores depositados, e os enviava para o endereço 1FuiZdyNvJPy5pPdJMSNSoUhme3D6FmPpp.
Esse endereço pertencente à carteira do Mercado Bitcoin recebeu, até o comunicado da invasão da exchange, um total de 15.241,79466189 BTC .
Os peritos concluíram em seu laudo que :
“Foi examinado todo o mês de março de 2013, e em nenhum momento a carteira do Mercado Bitcoin possuiu saldo nem próximo ao que foi investido por Thiago Martins, sendo que nos dias anteriores ao “ataque”, o maior balanço registrado foi de 210.971941 BTC em 2013-03-21 20:28:04, ou seja, nem 10% do valor devido a Thiago Martins. Mais contundente do que esse fato, é o fato de que não houve nenhum depósito substancial na carteira do Mercado Bitcoin em todo esse período, ou seja, a afirmação de Leandro César de que enviou todos os fundos do Grupo de Investimento Bitcoin (“Bitcoin Rain”) para o Mercado Bitcoin no final de março de 2013 é falsa”
Contra-ataque
Os advogados do escritório Pereira Neto Macedo, em defesa do Mercado Bitcoin, afirmaram que a sua cliente “pouco sabe acerca da estrutura do ‘Grupo de Investimento’ que se autodenominou BitcoinRain”.
Eles disseram que se o grupo Bitcoin Rain desejava aumentar a rentabilidade dos bitcoins ali investidos, a melhor saída seria de comprar na baixa e vender na alta e é nesse ponto que entraria a exchange.
“Para vender os Bitcoins “na alta” e comprar mais “na baixa”, o “Grupo de Investimentos” precisava obviamente operar nas exchanges, sites dedicados a intermediar a compra e venda de Bitcoins, como é o caso da MtGox, da BTC-e e, é claro, do mercadobitcoin.com.br.”
O Mercado Bitcoin ainda apontou, por meio de seus advogados , que a exchange foi constituída com tal em maio de 2013 e que isso ocorreu após Leandro César anunciar a perda das criptomoedas (março de 2013).
Os advogados afirmaram que os adquirentes do Mercado Bitcoin não devem responder por débitos anteriores pelo fato não ter existido a contabilização regular desses débitos.
“A hipótese do art. 1.146 da lei civil estabelece que o adquirente de um estabelecimento responde por débitos anteriores à aquisição, desde que regularmente contabilizados”.
Apesar da defesa afirmar, na contestação, que a empresa só passou a existir em 2013, os autores juntaram na sua inicial provas de que o Mercado Bitcoin foi fundado em 2011 por Leandro Marciano Lopes.
A formalização da sociedade com ato constitutivo registrado na Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp), entretanto, é que ocorreu em maio de 2013. Nesse período Leandro Marciano Lopes ainda continuou como sócio.
Defesa de Leandro César
A petição do ex-dono da Bitcoin Rain foi suscinta. Com apenas duas páginas, César argumenta que não se trata de aplicar o Código de Defesa do Consumidor como bem queriam os autores.
Ele afirma que Thiago Martins era “um parceiro” e que não havia qualquer relação de consumo.
Sobre esse mesmo pedido, o Mercado Bitcoin apenas mencionou que o caso se trata de atuação no mercado e não há qualquer coisa a ver com relação de consumo.
Perito nomeado
Como se trata de um caso de grande complexidade é necessário ter um perito. Os autores haviam nomeado José Pio Tamassia Santos, o que foi rechaçado pelo Mercado Bitcoin.
A defesa da corretora argumentou que Tamassia Santos era suspeito por ter lecionado na pós-graduação em Direito eletrônico na Escola Paulista de Direito, na mesma época em que o advogado Renato Ópice Blum, do escritório que defende os autores, foi coordenador desse curso de pós.
A juíza, entretanto, não acolheu a tese de suspeição levantada pelos advogados do Mercado Bitcoin.
Resposta do Mercado Bitcoin
A equipe de reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa do Mercado Bitcoin, a qual se limitou a dizer que a empresa não fala sobre processos judiciais em andamento.
- Sentença do caso Minerworld pode sair somente em 2020
- Volume de transações de Bitcoin alcança níveis de quando valia US$ 20.000