Em setembro, houve uma grande controvérsia quando Brian Armstrong, CEO da Coinbase, anunciou, no Twitter, que a Comissão de Valores Mobiliários e de Câmbio dos EUA (SEC) havia ameaçado processar a empresa se esta avançasse no lançamento de seu produto planejado Lend.
Duas semanas depois, a Coinbase encerrou o produto.
As versões mais antigas dos documentos de marketing sobre Lend não estão mais publicamente disponíveis no site da Coinbase, mas podem ser encontrados com o uso da ferramenta Wayback Machine.
Esses documentos mostram que o programa iria funcionar pela combinação de mutuários (aqueles que emprestam) da stablecoin USD Coin (USDC) e “mutuantes qualificados”.
Os mutuários se sentiriam confortáveis em empresta sua USDC, pois a Coinbase iria garantir o empréstimo a credores principais.
Ainda não se sabe se, nessa versão, a Coinbase iria literalmente combinar mutuários e mutuantes diretamente ou simplesmente criar um pool do qual realizariam empréstimos garantidos por criptomoedas.
No tuíte de Armstrong, ele alegou que a SEC havia informado à Coinbase que o produto Lend era um valor mobiliário, de acordo com as leis federais, “sem explicar o porquê”. Vamos analisar a primeira página da Lei de Valores Mobiliários de 1933:
O termo “valor mobiliário” significa que qualquer nota; ação; título de tesouro; futuro de valor mobiliário; swap baseado em valor mobiliário; título; debênture; evidência de dívida; certificado de interesse ou participação em qualquer acordo de compartilhamento de lucros; certificado de fundo patrimonial de garantia; certificado ou inscrição de pré-organização; ação transferível; contrato de investimento; certificado de fundo de votação; certificado de depósito para um valor mobiliário; juros indivisíveis e fracionais sobre olho, gás ou outro direito sobre minerais; qualquer opção “put” [venda], “call” [compra], “straddle” [operação simultânea de compra e venda] ou entrada privilegiada em qualquer [operação de] valor mobiliário; certificado de depósito; grupo ou índice de valores mobiliários (incluindo o valor deste ou baseado no valor deste); qualquer opção “put”, “call”, “stranded” ou entrada privilegiada em uma corretora nacional de valores mobiliários relacionada a moedas estrangeiras; ou, em geral, de qualquer juro ou instrumento comumente conhecido como um “valor mobiliário”; qualquer certificado de interesse ou participação, certificado temporário ou interino, recibo, garantia ou bônus de subscrição ou direito de inscrição ou compra dos [instrumentos] acima mencionados.
Agora, ficou claro que é fácil caracterizar esse produto de dívida como um valor mobiliário.
A primeira versão do proposto produto Lend da Coinbase parecia sugerir que participantes individuais seriam combinados com específicos “mutuários qualificados”.
Assim, a Coinbase atuaria apenas como uma custodiante, certificando que os pagamentos de juros fossem enviados para o cliente correto e administrando o programa.
A Coinbase faria com que “você” (o cliente) parecesse estar fazendo o empréstimo e que a única obrigação da corretora seria sua “garantia”.
Nessa versão, com aplicação direta, é óbvio que a Coinbase iria facilitar a emissão de valores mobiliários não registrados por esses “mutuários qualificados”. O argumento contra essa versão, a partir da perspectiva da SEC, seria bem indiscutível.
Não vale muito a pena perder tempo nessa versão sobre Lend. Existem alguns detalhes nessa versão que seriam dificílimos de administrar, então a Coinbase pode nem ter pretendido lançar o produto dessa forma.
O cenário mais provável é que a empresa estivesse propondo uma “grande cesta” onde esses “depósitos” em USDC seriam alocados, utilizados pela Coinbase em empréstimos.
A versão atual e bem mais detalhada da proposta no site da Coinbase (com um aviso de “Atualização” no topo, indicando que Lend não será lançado) possui um texto diferente e mais claro. Explica que você estaria emprestado suas criptos para a Coinbase e sua conta na Coinbase ganharia juros.
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Acordos diretos com mutuários de cripto não foram mencionados. Então como ter uma conta na Coinbase configuraria em uma oferta de valor mobiliário?
Chegamos até o maligno teste de Howey. No caso SEC vs. Howey Co., o Supremo Tribunal decidiu que um contrato de investimentos, que é um tipo de valor mobiliário, mas não o único tipo, é definido como:
[U]m contrato de investimento, para fins da Lei de Valores Mobiliários, significa que um contrato, uma transação ou um esquema em que uma pessoa investe seu dinheiro em um empreendimento comum e esperar por lucros basicamente pela iniciativa do promotor ou de um terceiro, sendo imaterial se as ações na empresa são evidenciadas por certificados formais ou por juros nominais nos ativos físicos aplicados na empresa.
Já que Lend era composto por um pool de USDCs recebidas de “mutuários”, que são separadas do restante dos ativos da Coinbase, são um “empreendimento comum”, segundo a definição da lei de valores mobiliários.
“Investidores” esperariam que a Coinbase (a “promotora” ou “terceira”) emprestasse esse pool de fundos e gerenciasse o Coinbase Lend. Dessa forma, podem obter rendimentos bem acima do que os pagos por contas-poupança convencionadas.
Seria fácil pensar que, se a Coinbase afirma estar fornecendo “juros”, o teste de Howey não se aplica. Isso está incorreto.
Inúmeros pools de investimento no mundo real chamam o rendimento que investidores recebem de “pagamentos de juros”. O que importa é que o rendimento vem desse pool de ativos, e não o portfólio geral da “entidade promotora”.
Se os rendimentos desse pool de ativos falhar em cumprir com o juro prometido, a Coinbase iria reduzir essas “taxas de juros” em proporção ao investimento principal do investidor sem se responsabilizar.
Afinal, são uma custodiante desses fundos, e não uma devedora aos investidores do Coinbase Lend.
Isso é absurdamente parecido com “ações”.
Além disso, o teste seria inútil se tais pequenas alterações escapassem da supervisão da lei de valores mobiliários.
Conforme definido pelo teste de Howey, a lei de valores mobiliários “incorpora um princípio flexível, e não estático, capaz de ser adaptado para atender aos incontáveis e variáveis esquemas elaborados por aqueles que visam usar o dinheiro de outros com a promessa de geração de lucros”.
Então, em contraste às afirmações de muitos executivos corporativos de cripto, a lei de valores mobiliários não é “datada”, e sim criada para evoluir com o tempo. Impedir o Coinbase Lend é um exemplo do sucesso, e não do fracasso da lei de valores mobiliários.
Por toda a confusão da tecnologia, esse esquema é, legalmente, um contrato de investimento bem convencional e deve ser considerado como tal. A grande confusão em torno do que esse produto deveria ser evidencia desse fato.
*Texto de opinião escrito por Nathan Tankus, diretor de pesquisa da Modern Money Network, publicado primeiramente na newsletter Notes on the Crises e republicado no Decrypt, cuja opinião do autor não reflete a do portal.
**Traduzido e editado por Daniela Pereira do Nascimento com autorização da Decrypt.co.