A resposta é simplista e direta: o uso do Whatsapp colocaria, praticamente de maneira instantânea, 120 milhões de novos pontos transacionais no mercado (se você pensou em ‘maquininhas’ quase acertou. Seria como ter maquininha e cartão — o plástico — ao mesmo tempo, por um custo ínfimo), o que seria algo sensacional, não fosse o discreto fato de que todas as transações de todos esses novos pontos seriam processadas única e exclusivamente por uma única empresa; a Cielo.
(Apenas supondo, não vi os contratos, mas pelo que foi divulgado e pela imediata valorização das ações da empresa no dia seguinte, 30%, é o que se depreende).
Excelente para os executivos da Cielo que conseguiram amalgamar esse acordo com o Facebook, mas péssimo para o mercado em termos de concentração. Daí a ação imediata do Bacen.
Para entender a minha afirmação precisamos mapear algumas estruturas:
Histórico do mercado de pagamentos com cartões no Brasil
Não vou me alongar, mas o Bacen fez diversos estudos, sendo o mais interessante esse aqui, de maio de 2005, explicando as estruturas de concentração e ruptura nos players do sistema.
Ao longo dos anos seguintes, principalmente por conta desse e de outros estudos setoriais (ABECS, ABBC, etc) o regulador se movimentou e realizou uma série de mudanças.
A nova ‘estrutura’ do mercado de pagamentos
Esta estrutura vem de uma lei de 2013 complexa e longa, cheia de pedaços anexos e vinculada a várias outras circulares. Mas… Em 2013… O Bacen passou a fiscalizar os arranjos. Algo fundamental para a aceleração do desenvolvimento do setor.
Os projetos de flexibilização desta estrutura, em seguida, foram conduzidos pelo Bacen, com o passar dos anos.
Em 2016, o game esquentou mais ainda, com a publicação uma nova circular, visando organizar as formas de prestação de serviço de pagamento, no que passou a se chamar formalmente de “arranjos de pagamentos”. Neles, poderiam conviver integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) e outros.
O projeto do arranjo de pagamentos.
Esse novo marco regulatório viabilizou uma explosão de novos players, entre novos adquirentes, novos emissores e, segundo alguns, fez o mercado de fintechs explodir. Por ele, inclusive, começamos a ter as pesadas concorrências no mercado de wallets (contas digitais), como podemos observar nos dados da consultoria Tendências.
E isso nos trouxe a realidade atual
E, principalmente, o CUSTO caiu.
A ‘treta’
No último dia 15 de junho, o Facebook anunciou o lançamento de um serviço de pagamentos por meio do WhatsApp, que possui no Brasil seu segundo maior mercado no mundo. A big tech é a proprietária do aplicativo de mensagens.
A empresa de Mark Zuckerberg se associou às bandeiras Visa e Mastercard, aos bancos Nubank, Banco do Brasil e Sicredi e, à credenciadora Cielo.
O anúncio rapidamente chamou a atenção do mercado e de seus reguladores, que solicitaram mais informações sobre o projeto.
No dia 23/06, tanto o Cade quanto o Banco Central notificaram parceiros e determinaram a suspensão do serviço oferecido pela big tech. A alegação dos dois organismos foi de que essa parceria poderia representar riscos ao mercado e precisaria passar por avaliação antes de ser de fato implementada.
Em 24/06, o Bacen publicou uma nova circular, o que segundo muitos dos agentes do mercado, mudaria a regra do jogo.No mesmo dia, representantes do Facebook e do Banco Central se reuniram por videoconferência.
Segundo o jornal Valor Econômico, no dia 25/06, o WhatsApp divulgou comunicado no qual diz que está trabalhando em conjunto com os parceiros e as autoridades para restaurar seu serviço de pagamentos.
O WhatsApp acrescentou ainda que esse serviço será conectado à plataforma de pagamentos instantâneos em desenvolvimento pelo regulador, o PIX.
Dia 08/07, Mastercard e Visa apresentaram documentos ao Bacen (que não tivemos acesso) pedindo revisão da posição e reforçando que o Whatsapp Pay seria apenas um “ativador de pagamentos” via suas tecnologias de token.
No dia 09/07, o Bacen lançou uma consulta pública do mesmo encaixe, já prevendo o arranjo no modelo Open Banking.Até hoje, 13/07, é o que temos de novidades.
Conjecturas
Quando juntamos num único modelo:
- Uma big tech com um longo histórico de conflitos com reguladores (em várias esferas), mas que em teoria, pode lançar qualquer coisa com 120 milhões de clientes;
- O maior banco do país, BB;
- O mais agressivo banco entrante (Nubank);
- Uma das maiores cooperativas (Sicredi);
- O maior adquirente (que faz o clearing geral e repassa o dinheiro aos lojistas)
Claro que o regulador (no mais moderador sentido do termo, que regula as regras do mercado) teria de agir.
Para mim, não fazia o menor sentido viabilizar tal arranjo, nos termos que entendemos, simplesmente por limitar a um único adquirente.
Muitos colegas imediatamente começaram manifestações de que o banco não poderia intervir e “evitar a inovação”. Mas tendo em vista o histórico e os avanços dos últimos anos, o Bacen apenas evitou um movimento de retorno à concentração.
Enquanto isso, desenrolam-se as trilhas do futuro, através do que será o PIX (ainda em definições) e onde o Bacen poderá determinar muito da sua criatividade técnica incluindo aí, os modelos propostos por Whatsapp Pay, seus parceiros, e outros que por ventura venham a surgir no entorno das super apps.
Não me surpreenderia ver no mercado modelos que incluam uma nova bandeira nacional, num banco digital, pilotado por um grande varejista — ou por um grande atacadista.
Aguardemos.
Sobre o autor
Courtnay Guimarães é consultor empresarial, executivo de TI e especialista no mercado de criptomoedas. Atualmente é cientista-chefe na BRQ Digital Solutions, onde já comandou outros setores, como o de Inteligência Artificial e Blockchain.
*Disclosure: Esta é uma peça de expressão de opinião — não são fatos, não há comprovação nem são acusações; apenas conjecturas. Nenhuma das empresas citadas foi contatada para fornecer suas versões dos fatos, mas podem fazê-lo e publicaremos update.