Governos consideram as criptomoedas como uma “ameaça em evolução”, disse o ativista de internet Edward Snowden, que concedeu uma longa entrevista a Marta Belcher, presidente da Filecoin Foundation e conselheira geral do Protocol Labs, durante o evento Camp Ethereal 2022 na semana passada.
“Acredito que governos devidamente enxergam uma ameaça em evolução às ferramentas tradicionais com as quais se acostumaram, em termos de uma capacidade de impor regulamentações a vidas privadas e, em termos mais gerais, a negociação privada”, disse Snowden.
O “invasivo” sistema financeiro americano
Snowden também criticou o sistema financeiro “extremamente invasivo” dos EUA:
Quando você pensa na forma como a rede financeira extremamente invasiva dos EUA opera, com todas essas imposições antilavagem de dinheiro e de “conheça seu cliente” [KYC], é difícil, para mim, acreditar que, se tivessem a capacidade técnica de facilmente obter o número de série de cada cédula de dólar que passasse por eles, que não o fariam.
Para o delator do governo, essas características prejudicam o popular pressuposto de que o dinheiro é anônimo:
Temos esse pressuposto de que o dinheiro físico é anônimo, que o herdamos de uma época em que realmente era anônimo. Isso não é mais verdade. Quando você pensa no registro público do Bitcoin…
Quando um dólar entra no sistema bancário, existe um registro privado que está disponível às pessoas que realizam a supervisão financeira. Então é realmente privado às pessoas, mas é público aos “chefões”, digamos assim.
E entram as criptomoedas.
Cripto e a supervisão financeira
Snowden é um grande crítico do Bitcoin pelo mesmo motivo que ele critica o sistema financeiro tradicional.
Na conferência Ethereal Summit em 2021, Snowden havia dito que o bitcoin (BTC) devia ser “privado por padrão” para combater iniciativas de autoridades em reprimir outras criptomoedas, incluindo moedas de privacidade, como Monero (XMR).
Durante a Ethereal Summit deste ano, ele disse que o Ethereum “sofre dos mesmos tipos de problema de privacidade que o Bitcoin” e disse que, na blockchain Bitcoin, “você tem a galera da Chainalysis e afins que estão fazendo coisas bastante desonestas com ela [a blockchain]”, como “tentar obter uma vantagem financeira da análise em blockchain”.
Ainda assim, ele chamou a blockchain Bitcoin de “jogo justo” e disse que nenhuma de suas reclamações sobre privacidade o impediram de enxergar o poder das criptomoedas e da tecnologia descentralizada em grande escala.
“O que as pessoas realmente não entendem ao se aprofundarem nesse setor é sobre quão transformadoras são as relações de poder, ou quanto as relações de poder vão gerar transformações, à medida que migramos dessas tecnologias tradicionais para esses tipos de futuras tecnologias descentralizadas”, explicou.
Mas é verdade que governos consideram a indústria cripto como uma “ameaça em evolução”? Quando se fala em EUA, é fácil defender essa ideia com base em recentes sinais regulatórios.
EUA, criptomoedas e a segurança nacional
Os Estados Unidos regularmente fazem alertas sobre os perigos das criptomoedas à segurança nacional.
Em 2021, a administração Biden criou uma força-tarefa com o abjetico de combater ciberataques e rastrear pagamentos de resgate em criptomoedas oriundos de ataques com ransomwares (vírus).
Crane Hassold, ex-agente do FBI e atual diretor de inteligência contra ameaças na Abnormal Security, contou recentemente ao Decrypt que criptomoedas são o “principal elemento” na atual indústria de ransomware.
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O presidente Biden também alertou que a Rússia agisse para combater a atividade ilícita de ransomware que acontece em seu território.
A Rússia não o fez. De acordo com dados recentes da Chainalysis, criminosos apoiados pela Rússia garantiram cerca de 74% dos lucros provenientes de ransomwares em todo o mundo em 2021.
Parte desses lucros foi gerada bem no coração de Moscou, onde o prestigioso arranha-céu russo Vostok era usado para facilitar negócios de uma variedade de hackers, cibercriminosos e lavadores de dinheiro com criptomoedas.
Em outubro de 2021, o Tesouro americano publicou um relatório, afirmando que criptomoedas podem prejudicar sanções econômicas (um antigo alicerce das políticas externas dos EUA).
“Essas tecnologias oferecem oportunidades para que agentes malignos armazenem e transfiram fundos fora do sistema financeiro tradicional. Também dão autonomia para que nossos adversários continuem desenvolvendo novos sistemas financeiros e de pagamento para minimizar o papel global do dólar”, de acordo com o relatório.
Essas preocupações se intensificaram em meio à recente invasão da Rússia à Ucrânia, apesar de muitos especialistas afirmarem que a evasão de sanções pela Rússia com criptomoedas não seria uma tarefa fácil.
Por motivos óbvios, Snowden não comentou publicamente sobre a Ucrânia, mas suas observações sobre governos e cripto também se aplicam a esse assunto.
Rússia, Ucrânia e sanções
É sabido que a administração Biden se preocupa com o uso de criptomoedas para evitar sanções econômicas e, assim, segundo Snowden, esses ativos atuam como uma “ameaça” à segurança nacional.
Em 1º de março, o Gabinete de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC) do Tesouro americano anunciou que iria apresentar novas regras criadas para restringir transações financeiras e aplicar sanções existentes contra o Estado russo.
As normas, chamadas de “Russian Harmful Foreign Activities Sanctions Regulations” (ou “Regulações de Sanções a Atividades Russas Estrangeiras e Danosas”, em tradução livre), visam “transações, estruturas ou negócios enganosos para evitar quaisquer sanções dos Estados Unidos, incluindo por meio do uso de moedas ou ativos digitais ou o uso de ativos físicos”.
Grandes pessoas da indústria cripto questionaram o papel das criptomoedas como ferramentas eficazes na evasão de sanções, incluindo Jake Chervinsky, líder de políticas da Blockchain Association.
Mas existem alguns precedentes. David Carlisle, diretor de assuntos políticos e regulatórios na empresa de análise em blockchain Elliptic, recentemente mencionou corretoras não regulamentadas que são usadas por cibercriminosos afiliados à Rússia.
“Já vimos exemplos de serviços de corretoras de criptoativos que permitiram que criminosos russos lavassem altas quantias de dinheiro”, disse ele durante uma conferência recente, mencionando SUEX como um exemplo.
Em setembro de 2021, o OFAC sancionou SUEX com base em uma Ordem Executiva existente que autoriza a imposição de sanções a pessoas e entidades envolvidas em ciberatividades contra os interesses dos Estados Unidos.
Em termos de como governos nacionais podem “fazer a coisa certa”, Snowden destacou as recentes medidas de autoridades canadenses ao bloquearem o acesso de protestantes às suas contas bancárias como um exemplo perturbador de ultrapassagem de limites:
“Alguém deve poder enviar qualquer coisa para qualquer um. E isso não deve ser algo no qual possamos interferir, algo que o governo do Canadá ou afins possa dizer “Vamos suspender isso”. Se fizermos isso (e isso não é uma suposição, pois já está acontecendo)…
A ideia de o Canadá, dentre todos os locais, fazer isso (e acredito que de grande parte das pessoas considera o Canadá como um governo bem informado) é uma verdadeira ilustração sobre esse receio.
Se você é a favor ou contra esse protesto ou movimento específico, é algo secundário ao problema de que, num piscar de olhos, estamos vulneráveis a sermos incapazes de retirar qualquer coisa da carteira.”
*Traduzido e editado por Daniela Pereira do Nascimento com autorização do Decrypt.co.