Imagem da matéria: Bitcoin e El Salvador: a utopia do dinheiro não vai ajudar o cidadão comum
Presidente de El Salvador, Nayib Bukele (Foto: Divulgação)

O governo salvadorenho, liderado pelo presidente Nayib Bukele, aprovou no dia oito de junho de 2021 a assim chamada lei “Lei Bitcoin“, cujo objetivo é legalizar a circulação do bitcoin como moeda de troca em El Salvador, que vai circular em paralelo ao dólar, a moeda oficial do país.

Gostaria portanto de fazer algumas ponderações que, desde meu ponto de vista, deveriam ser levadas em consideração antes de dar esse salto no escuro que poderia ter sérias consequências para a estabilidade social, fiscal, política e econômica de El Salvador.

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Vou dividir este artigo em três partes: contexto político; desvantagens; vantagens

O contexto político salvadorenho

Em 1992, El Salvador alcançou o fim de uma guerra civil que durou 12 anos, depois de assinar os acordos de paz de Chapultepec, no México, onde as partes em conflito, o Estado Salvadorenho e a guerrilla (o FMLN — Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN)), assinaram a paz e escolheram a via democrática para resolver os conflitos sociais, políticos e econômicos do país. 

Durante 30 anos os dois partidos herdeiros da guerra, FMLN e ARENA, se revezaram no poder e fizeram da política o seu ‘modus vivendi’. A situação levou a população ao cansaço, dando espaço assim a um jovem político (que também tinha militado no FMLN), Nayib Bukele, quem se lança como candidato presidencial sob a promessa de um novo jeito de fazer política, alcançando a presidência em fevereiro de 2019.

Com um estilo autoritário e afastando-se a cada dia mais das suas promessas de campanha, em fevereiro de 2021, Nayib Bukele conquista com o seu partido Novas Ideias a maioria qualificada no Congresso Salvadorenho o que virtualmente lhe daria o poder de aprovar tudo aquilo que ele desejar. O primeiro ato da casa dominada pelo partido do presidente foi destituir os juízes do Tribunal Supremo e o Procurador Geral, gerando assim a mais grave crise política em El Salvador desde o fim da guerra.

Diante dessa situação e com sérios indícios de corrupção em sua gestão, o governo dos Estados Unidos e grande parte da comunidade internacional condenaram a aventura autoritária do presidente millennial, o que põe em risco o financiamento de um resgate financeiro junto com o FMI (Fundo Monetário Internacional) e outras organizações como o BCIE, BM, BID, entre outros, que o presidente tem solicitado nos últimos meses. 

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Diante da resistência do presidente de restaurar a ordem constitucional, conforme a comunidade internacional tem lhe solicitado, Bukele lança no dia oito de junho a Lei Bitcoin, que aparentemente seria a saída que ele tem achado para resolver os sérios problemas financeiros que o país vive sem ter que depender da boa vontade de organizações como o FMI, onde os Estados Unidos possui poder de veto.

Desvantagens

A volatilidade do Bitcoin

Imaginemos o seguinte cenário, no dia de hoje, eu, como investidor, compro X unidades de bitcoin pelo preço de mercado de US$ 36.500 porque depois de ter feito a devida análise técnica cheguei à conclusão que o valor da moeda vai subir, mas, para proteger a minha posição na plataforma Binance, coloco uma ordem do tipo OCO (sigla em inglês para ‘uma ordem cancela a outra’).

Essa ordem me permite pôr duas ordens de venda: uma para fechar a minha posição, uma vez que o objetivo daquela operação tenha sido alcançado; e outra para proteger o meu capital e fechar minha posição caso a cotação do bitcoin caia abaixo de um determinado preço.

Mas essa é a maneira como um investidor pensa. Agora imagina a situação de um cidadão que ganha um salário mínimo (US$ 300 em El Salvador) e que precisa de cada centavo do seu ordenado para a sua subsistência. Essa pessoa não pode se dar esse luxo e o mais provável é que também não tenha o conhecimento nem o capital suficiente para entrar numa plataforma como Binance ou Coinbase para investir em Bitcoin.

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Qual seria então o benefício para esse cidadão de expôr o seu salário a esse nível de volatilidade? Que garantias o governo poderia oferecer a um trabalhador para não perder o valor do seu salário caso o mercado de bitcoin sofresse uma queda acentuada como a de dois meses atrás, quando a criptomoeda perdeu mais de 50% do seu valor?

A criação de um paraíso fiscal

No artigo número cinco da Lei Bitcoin podemos ler: “A troca de valores em Bitcoin fica isenta de impostos nos lucros de capital da mesma forma que qualquer moeda de curso legal”.

Creio que não é necessário ser um doutor em constitucionalismo nem um fiscalista do Ministério da Fazenda para entender que, com a Lei Bitcoin, o presidente Bukele estaria criando um paraíso fiscal para atrair todo tipo de capital especulativo. E a razão para isso é muito simples: qualquer país com uma política fiscal decente taxa os ganhos de capital, sejam estes ações, criptomoedas ou qualquer tipo de ativo.

Com a Lei Bitcoin, El Salvador se converteria em um lugar muito atrativo para estacionar grandes quantidades de dinheiro para poder fazer trading em Bitcoin. Em 2015, El Salvador assinou um acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) contra o combate à evasão fiscal internacional.

Será que o presidente Bukele já parou para se perguntar que implicações teria para El Salvador converter o país num paraíso fiscal? Isto merece uma análise mais profunda, coisa que definitivamente não foi feita pelos legisladores salvadorenhos que aprovaram a lei em apenas cinco horas sem discussão nenhuma.

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Perigo iminente de inflação. 

O brasileiro, creio eu, ainda lembra dos tempos da hiperinflação e sabe perfeitamente que uma das razões disso é a falta de confiança na autoridade monetária. Com um bitcoin volátil, onde não há garantias de preservação do valor do dinheiro, as pessoas tem três opções:

  • não usar o Bitcoin, mas a lei os obriga a fazê-lo, portanto;
  • para driblar a volatilidade, as pessoas fazem a conversão automática e instantânea de bitcoin para o dólar, conforme consta no artigo 14 da lei através da qual o governo oferece a possibilidade de comprar os bitcoins, caso as pessoas não queiram correr o risco da volatilidade;
  • ou, o cidadão assume o risco, o que poderia ter sérias consequências no poder aquisitivo das pessoas.

De qualquer forma, o comércio se veria obrigado a manter bitcoin em “caixa” para poder fazer transações de compra-venda e absorvendo assim o risco de perda de valor, o que naturalmente causaria uma busca de “hedge” cambial por parte do empreendedor.

Isso naturalmente geraria inflação porque diante da eventual perda de valor do bitcoin o comércio teria a tendência natural de aumentar os preços para se proteger das flutuações cambiais, deixando assim os preços dos bens e serviços flutuarem ao vaivém da cotação do bitcoin. Mas quem pagaria o pato da volatilidade do Bitcoin? O cidadão que vive do seu salário naturalmente porque ele seria penalizado com o aumento dos preços, ou seja, com a inflação.

As taxas de compra e venda do bitcoin, assim como as taxas pelo uso da carteira digital também adicionariam um custo aos preços, custo que atualmente é inexistente. A cada transação de compra-venda, o empreendedor ou o cidadão teria que pagar pela transação, custo que não passaria despercebido nem pelo vendedor nem pelo comprador.

A garantia estatal de compra imediata do Bitcoin

Para aliviar o impacto da volatilidade do bitcoin, o governo criará, conforme consta no artigo número 7 da Lei Bitcoin, uma garantia pelo valor de US$ 150 milhões para que as pessoas possam fazer a conversão imediata e instantânea do Bitcoin para o dólar e assim poder evitar a volatilidade da criptomoeda. Essa garantia, entretanto, independentemente de não sair diretamente do bolso das pessoas em termos de perda de valor por causa da volatilidade, seria paga com os impostos do povo.

Além do mais, há um consenso entre os economistas que este tipo de garantia apenas aumentaria o déficit fiscal do governo que teria que arcar com as perdas de valor do bitcoin em caso de uma tendência acentuada de baixa na cotação. De igual forma, é bom lembrar que diariamente seriam milhares de transações em bitcoin; um cálculo simples no valor do PIB de US% 25 bilhões nos dá um volume diário de transações no valor de US$ 68 milhões.

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Uma garantia de US$ 150 milhões conseguiria, portanto, cobrir o câmbio de bitcoin/dólar por apenas dois dias. E caso o volume de cash do governo se esgotar, ele teria de recorrer a financiamento adicional aumentando assim o déficit fiscal e eventualmente levando o país à falência. Qual seria o benefício dessa operação cambial para o país? 

A entrada de capital estrangeiro

Existem dois tipos de fluxo de capital externo:

  • investimento estrangeiro direto, que é o capital externo que entra no país para financiar a economia real, que gera emprego e tributos e cujo objetivo é de longo prazo. Esse é o tipo de capital que qualquer país quer atrair;
  • capital especulativo, que é o tipo de capital que estaria sendo atraído a El Salvador pela possibilidade de poder investir no bitcoin sem ter de pagar impostos sobre os ganhos de capital. Este capital entra e sai rapidamente dos países na medida em que as condições econômicas, políticas e institucionais não lhe sejam convenientes para fazer negócios. A aposta do presidente Bukele é poder atrair bilhões de capital especulativo na esperança de que isto possa turbinar a economia, mas ele esquece que esse capital vai ingressar majoritariamente no mercado do bitcoin e, portanto, o seu impacto na economia real será limitado. Mas aqui existem algumas nuances que é preciso considerar. 

Junto com o capital especulativo também ingressará ao país capital de duvidosa origem e isto colocará El Salvador na lista negra dos países que facilitam a lavagem de dinheiro. Mas, alguém na sua sã consciência poderia dizer que isso seria positivo para El Salvador? Pior ainda, se os retornos no investimento no mercado de capitais não pagarem impostos, qual seria o incentivo econômico para que os empresários na economia real continuem investindo, enquanto que outros ganham fortunas sem ter que pagar nenhum centavo ao leão?

Sistemas informáticos não aptos para o bimonetarismo

A introdução do bimonetarismo traz consigo sérios desafios para a base informática instalada no país. Adaptar todos os sistemas informáticos, sistemas que vão desde os pontos de venda, bancos, governo, etc, vai ter um custo que aparentemente não foi considerado pelo governo na hora de aprovar a Lei Bitcoin. Essa conta será paga mais uma vez pelo trabalhador, pelos empresários e pelo Estado Salvadorenho. Mas será isto um investimento ou um custo sem maiores benefícios? 

A questão fiscal

Com a circulação do bitcoin como moeda oficial, fazer transações sem deixar nenhum rastro no sistema bancário e fiscal do país será a coisa mais fácil do mundo, o que vai na direção contrária do programa de combate à evasão fiscal do governo. Esta medida. portanto, terá um impacto negativo nas contas públicas porque a tendência será o aumento da evasão fiscal e não o contrário. Isso sem falar que desde um ponto de vista fiscal, o capital especulativo entrará ao país apenas para usufruir de um bônus fiscal sem ter que arcar para tanto com o ônus. 

De igual forma, na medida em que os empresários comecem a entender que fazer pagamentos através de bitcoins poderia lhes dar uma vantagem para evadir o fisco, eles poderiam usar a criptomoeda para evitar deixar rastro das movimentações financeiras e poder assim evadir o fisco de maneira mais eficiente. Mas como já falamos antes, isto traz consigo outros riscos que implicariam em custos tanto para o empresariado qunato para o governo.

Sobre as taxas 

Atualmente os salvadoreños não pagam taxas adicionais a cada compra-venda efetuada, mas isso não seria mais o caso com o bitcoin, cada transação pagaria um custo e esse valor incidiria diretamente na renda dos trabalhadores como nos custos dos empreendedores.

Entretanto, o governo lhe está vendendo ao povo a ideia de que não se pagaria nenhuma taxa, mas na prática isso é falso. Os caixas automáticos para fazer o câmbio de bitcoin/dólar cobram em El Salvador até cinco dólares por operação. Poderia uma pessoa que depende de um salário diário se dar o luxo de pagar cinco dólares para trocar, em muitos casos, bitcoin no valor de US$ 10? 

A mineração do bitcoin

O presidente Bukele tem oferecido à comunidade do bitcoin a possibilidade de mineração da criptomoeda usando energia limpa; em particular, energia térmica. Mas parece que o presidente se esqueceu que atualmente 27% da população salvadorenha não tem acesso à rede de eletricidade. Mas não apenas isso, uma boa percentagem da nossa energia é importada. Daí que cabe se perguntar, que país é esse que tem energia para minerar bitcoin enquanto e que não tem energia suficiente para toda a sua população?

As vantagens

Mas nem tudo são desvantagens, a chegada de bilhões de dólares em capital especulativo também vai demandar a construção de infraestrutura em diversos níveis:

  • Jurídica: os investidores precisarão de certeza jurídica que os proteja de eventuais penalidades nos seus países de origem, e a lei local terá de ser conciliada com as leis tributárias internacionais, o que demandará um contingente de advogados especialistas no assunto que os auxiliem nessa árdua tarefa.
  • Administrativa: para que os investidores possam se instalar no país é preciso a criação das chamadas “trust companies” através das quais o investidor poderia operar no mercado salvadorenho como pessoa jurídica. Uma trust company atuaria como um agente no nome de uma pessoa ou negócio com o objetivo de administrar, gerir e eventualmente transferir ativos financeiros a um beneficiário. Este tipo de expertise também terá de ser formada abrindo novas oportunidades no país.
  • Contábil: que permitirá aos investidores preparar a sua declaração fiscal sobre os seus lucros de capital junto com a autoridade fiscal salvadorenha e a do seu país de origem para poder legalizar os benefícios fiscais obtidos em El Salvador a 0% de taxa fiscal.
  • De infraestrutura: Eventualmente novos centros empresariais terão de ser construídos para hospedar todo tipo de empresa estrangeira que chegará no país seduzida pela Lei Bitcoin.
  • Informática: o setor fintech é caracterizado pelo uso intensivo de recursos informáticos tanto em hardware, software ou peoplewares, o que obviamente gerará uma grande demanda no setor da informática para poder operacionalizar o investimento de capitais no bitcoin.
  • Rede elétrica estável: que possa garantir um fluxo estável de eletricidade às empresas do setor fintech. Isto não seria apenas uma necessidade como um desafio e uma oportunidade para o país de poder chegar a ter uma rede elétrica robusta e estável.
  • Internet de alta velocidade: para poder operar em tempo real é preciso ter uma rede de internet estável e de alta velocidade. A chegada de bitcoin poderia também atrair capital para investir nesse segmento. 

A consequência natural disso tudo seria o investimento, a geração de emprego e a renovação da infraestrutura no país necessária para que o capital internacional possa operar em El Salvador. 

Conclusões

Apesar de conseguirmos identificar muitas consequências positivas na implementação da Lei Bitcoin, cabe neste momento se perguntar até que ponto o balanço da empreitada seria positivo.

Tomemos como exemplo a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil onde tiveram lugar em 2014 e 2016, respectivamente. O volume de investimento foi alto, os eventos lhe permitiram ao país renovar a sua infraestrutura esportiva, rodoviária, turística, etc. Mas o resultado da empreitada foi a quebra das contas públicas e a explosão de escândalos de corrupção pelo país afora, o que, no frigir dos ovos, acabou tendo um balanço negativo para o país, gerando uma crise social, política e econômica sem precedentes desde o fim da ditadura militar.

De igual forma em El Salvador, a Lei Bitcoin atrairia grandes volumes de capitais estrangeiros, geraria novas fontes de emprego e renda, lançaria o país na vanguarda da tecnologia financeira e o converteria num líder no segmento das criptomoedas. Mas existe um consenso entre os economistas e fiscalistas que o custo social, fiscal e econômico seria tão grande que os benefícios acabariam sendo marginais e o balanço seria negativo com graves prejuízos para o país.

A título de exemplo das consequências que já começaram a aparecer, El Salvador está negociando neste momento um resgate financeiro junto ao FMI, mas dada a imprevisibilidade das consequências da implementação da Lei Bitcoin, o órgão está começando a questionar seriamente a concessão do financiamento. Se isso acontecer, o orçamento do ano corrente ficará comprometido e, assim como o FMI, outras organizações multilaterais poderiam passar a questionar o financiamento do país salvadorenho, o que obrigaria El Salvador a procurar recursos no mercado financeiro a taxas de juro exorbitantes.

Até o presente momento, ninguém no país tem conseguido mostrar que, para o cidadão comum, esta medida poderia trazer qualquer benefício. Desde o ponto de vista fiscal, o consenso é que a Lei Bitcoin apenas aumentaria o déficit fiscal comprometendo as contas públicas de maneira significativa.

No frigir dos ovos, os grandes ganhadores da empreitada seriam apenas os especuladores internacionais que receberiam de mão beijada um paraíso fiscal para poder lavar dinheiro de origem inconfessável ou usufruir de lucros estratosféricos a uma taxa fiscal de 0%. 

Sobre o autor

Edwin Lima é salvadorenho residente em Amsterdam, onde trabalha como consultor na área de Business Intelligence e Inteligência Artificial. É mestre em Inteligência Artificial pela Universidade de Amsterdam (UvA) e Bacharel em Ciências da Computação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em João Pessoa, onde residiu durante sete anos.

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