Viagem à Praia do Bitcoin: como é a vida no local que começou uma revolução em El Salvador

Uma experiência única que acontece na praia de El Zonte ajuda a entender por que El Salvador se tornou o primeiro país do mundo a adotar bitcoin como moeda oficial
Imagem da matéria: Viagem à Praia do Bitcoin: como é a vida no local que começou uma revolução em El Salvador

Comerciante aceita pagamentos com bitcoin em El Salvador (Foto: Saori Honorato/Portal do Bitcoin)

Dois meses depois de El Salvador se tornar o primeiro país do mundo a adotar o bitcoin como uma moeda de curso legal, viajei ao país para ver de perto como estava sendo a implementação da criptomoeda e fui à famosa ‘Praia do Bitcoin’ — local que deu início a uma revolução no país.

El Zonte fica cerca de uma hora da capital do país, San Salvador. Lá o bitcoin não é usado por traders profissionais ou investidores que querem fazer o máximo de dinheiro possível. Naquela pequena praia habitada por cerca de 3 mil pessoas, o que prevalece é o papel social de uma tecnologia livre que garante àqueles salvadorenhos acesso ao sistema financeiro que sempre os excluiu.

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A realidade daquelas pessoas começou a mudar em 2019 depois que um investidor anônimo fez uma grande doação de bitcoin para a comunidade. O dinheiro poderia ser usado no que fosse necessário, com a única condição — de que permanecesse em bitcoin em invés de ser convertido em dólar, a moeda oficial de El Salvador desde o início dos anos 2000. Assim uma economia circular baseada no bitcoin começou a ganhar vida naquela praia. 

Maria de Carmen, 51 anos, faz parte de 70% da população do pequeno país que não tem acesso ao sistema financeiro tradicional. Ou seja, essas pessoas não podem fazer uma poupança ou tomar um empréstimo no banco. Quem mora em El Zonte, por exemplo, precisa viajar por quase uma hora até a capital San Salvador para pagar uma simples conta.

A pobreza também é nítida no local. Até então, o dinheiro que Carmen ganhava vendendo lanches para surfistas que viajam para El Zonte atrás das grandes ondas da região, nunca foi suficiente para melhorar sua condição de vida.

“Minha história com o bitcoin é que eu passei a ter coisas que antes nunca poderia ter”, contou Carmen assim que começamos a conversar. Em meio às risadas dos netos, que corriam para cima e para baixo na rua de chão batido, ela explicou da janela de uma pequena casa que divide com a filha que começou a usar a criptomoeda em janeiro. Foi quando um grupo de voluntários da Hope House, a organização que ajuda a construir a Praia do Bitcoin, foi até ela motivá-la a adotar a criptomoeda.

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“Como eu tenho minha pequena vendinha, eles vieram me dizer que seria uma coisa muito boa se eu começasse a cobrar as pessoas com bitcoin. Mas eu dizia não, parecia algo estranho”, relembra. Ela acabou mudando de ideia. “Depois de tanto insistirem, chegou um momento que eu falei, ‘tudo bem, posso aceitar bitcoin’. Dez meses depois, posso dizer que minha vida está melhor por causa disso”.

Ganhos com bitcoin

Todos os pagamentos que ela recebia com bitcoin ficavam parados na sua carteira e a volatilidade da moeda, um de seus maiores defeitos na visão dos críticos, pendeu a seu favor. 

O preço do bitcoin mais do que dobrou desde que Carmen começou a expor ao ativo, saltando de US$ 32 mil em janeiro para um topo histórico de US$ 68 mil em novembro. Nesse intervalo, ela conseguiu juntar US$ 530 em bitcoin e comprar uma geladeira que precisava.

“É bom pra gente quando o preço do bitcoin sobe. É a única chance de termos lucros e comprar coisas que não poderíamos ter antes de outra forma”. Por essa razão, ela conta que embora não veja problema em receber em bitcoin, ela prefere não usar a moeda para pagar outras pessoas e, assim, conseguir preservar sua poupança.

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O desejo dela é guardar bitcoin suficiente para ir aos EUA rever seus sete netos e cinco filhos, que foram para lá em busca de uma vida melhor.

Maria de Carmen (Foto: Saori Honorato/Portal do Bitcoin)
Maria de Carmen (Foto: Saori Honorato/Portal do Bitcoin)

A separação da família da Carmen ilustra bem a diáspora de El Salvador, um país que embora tenha uma das paisagens mais bonitas da América Central, rodeado por praias paradisíacas e vulcões, luta para se reerguer de décadas sob o controle de governos corruptos, de uma guerra civil de 12 anos que acabou com a infraestrutura do país, e da dominação de gangues que tirou de muitos jovens a perspectiva de futuro promissor.

A emigração é tão forte em El Salvador que 24% de todo o PIB do país deriva de remessas internacionais enviadas por salvadorenhos no exterior para seus familiares. Essa foi uma das justificativas para o governo de El Salvador adotar o bitcoin como moeda oficial.

Na abertura da Labitconf, a maior conferência de bitcoin da América Latina que levou eu e centenas de outros bitcoiners para El Salvador em novembro, a embaixadora do país nos EUA, Milena Mayorga, afirmou que a população vinha perdendo entre US$ 400 milhões e US$ 700 milhões por ano pagando taxas para grandes empresas americanas de remessas, como a Western Union.

Enquanto isso, na rede do bitcoin as transações internacionais são muito mais baratas, rápidas e livres, já que não dependem de nenhuma empresa ou governo para fazer qualquer mediação.

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“Prefiro dólar”

Embora usar bitcoin faça sentido para Carmen, nem todos os moradores de El Zonte enxergam os mesmos benefícios que ela ou têm o conhecimento necessário para usar bitcoin no dia a dia.

Maíra Caroline Flores, de 30 anos, estava na rua preparando a massa de pupusas, o prato mais tradicional do país, para vendê-las na feirinha da praia naquela noite. Perguntei para ela se eu voltasse mais tarde poderia comprar as pupusas com bitcoin, mas ela admitiu que não saberia receber. 

Maíra Caroline Flores (Foto: Saori Honorato/Portal do Bitcoin)
Maíra Caroline Flores (Foto: Saori Honorato/Portal do Bitcoin)

“Eu não consigo usar isso, sinceramente. Quando preciso, alguém sempre me ajuda. Eu sei usar o celular normal, o problema é que a carteira é complicada”. Ela disse que se pode escolher, prefere não receber em bitcoin. Mas quando isso acontece, ela não demora para ir até ao caixa eletrônico para sacar o dinheiro físico: “Prefiro dólar”. 

Juan Garcia, 75 anos, trabalhou a vida inteira em plantação de café e, embora goste de ver a praia movimentada, a razão da vinda intensa dos turistas o incomoda. Com um espanhol difícil de entender, resmunga que bitcoin é “coisa de anticristo”, mas confessa no final que todos os seus netos usam. 

Juan Garcia (Foto: Saori Honorato/Portal do Bitcoin)
Juan Garcia (Foto: Saori Honorato/Portal do Bitcoin)

“A aprendizagem é algo difícil, tem que ir pouco a pouco. Explicamos, mas o processo de educação é lento. Há muitas pessoas que não sabem ler nem escrever”, diz Luis Morales, um voluntário da Hope House que ajuda os moradores de El Zonte a usar o bitcoin.

Morales conta que antes de conhecer o bitcoin, foi jogador da seleção nacional de vôlei de praia de El Salvador. Uma vez foi convidado pela Hope House para dar uma aula de vôlei para as crianças da região, ele acabou construindo laços e resolveu se tornar um voluntário definitivo do projeto que foca em diferentes formas de ajudar a comunidade, para além do bitcoin. 

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Um dos objetivos da Hope House é dar às crianças da praia motivos para continuar no país e preencher a lacuna deixada pela alta taxa de evasão escolar que existe por ali. “Eles vão um pouco para a escola mas quando crescem, preferem trabalhar. O problema é que aqui o emprego fica escasso dependendo da temporada. Então estamos tentando dar aulas de inglês e ensinando a usar o computador para que eles consigam oferecer seus serviços para fora sem precisar abandonar o país”, explica Morales.

Com relação a adoção de bitcoin em El Salvador, ele assente que ainda não são todos que de fato usam a moeda, mas se diz confiante que isso mudará em breve com a nova geração que está surgindo. 

“Aqueles que sabem de verdade são as crianças que vão ocupar a tecnologia e poder ajudar seus pais. O legal é que eles já vão ter bitcoin, não vão precisar comprar quando tiver mais caro no futuro porque seus pais já estão guardando de herança para eles”.

Na região, o bitcoin parece ser muito mais aceito entre os mais jovens. Carlos Moisés, 19 anos, por exemplo, trabalha como salva-vidas nas praias de El Zonte e estampa o logo do bitcoin no seu uniforme de trabalho. 

Ele admite que ficou perdido quando foi usar a criptomoeda pela primeira vez, mas que sempre teve ajuda de pessoas da comunidade para ensiná-lo. Posteriormente, ele foi vendo vídeos no YouTube para aprender a usar por conta própria.

Carlos Moisés, guarda-vidas de El Zonte (Foto: Saori Honorato/Portal do Bitcoin)
Carlos Moisés, guarda-vidas de El Zonte (Foto: Saori Honorato/Portal do Bitcoin)

“Eu acho legal usar bitcoin para comprar em alguns lugares aqui em El Zonte, mas fora daqui não são todos os lugares que aceitam. Sei que é difícil usar, mas as pessoas têm que dar uma chance para aprender. Pouco a pouco você vai se acostumando”. 

Ele trabalha na praia desde que tinha 15 anos, inspirado por outros dois tios e três primos que também são salva-vidas. Diferentemente dos filhos de Carmen, Carlos não tem vontade de sair do país. “Eu amo morar aqui, é um lugar maravilhoso”.