Dentre os muitos ruídos que o direito recebe da sociedade em que se insere e se propõe a ordenar, aquele emitido pela criptoeconomia tem soado cada vez mais alto e constante.
Uso o termo “criptoeconomia” para me referir essencialmente ao uso abrangente da criptografia como mecanismo para chancelar e concretizar atos ou negócios jurídicos.
Contratos assinados digitalmente, transações financeiras facilitadas, comunicações privadas via aplicativos e mesmo atos administrativos digitais são exemplos desse uso crescente da criptografia na nova economia.
O ruído soa, o direito deve ouvi-lo e reagir reflexivamente a ele, sob pena de se tornar anacrônico e ineficaz. Em outras palavras, o direito deve dizer os limites e possibilidades da criptoeconomia.
Por um lado, a criptoeconomia tem despertado o interesse de entusiastas de diversos setores de mercado, que veem nessa nova forma de transação e de comunicação digital uma importante ferramenta contra falhas de segurança e em favor da privacidade.
Ainda, no mercado de ativos criptografados, como o Bitcoin, são milhões as pessoas que procuram uma nova opção de reserva de valor ou de pura especulação. O entusiasmo com o potencial desse novo mercado, enfim, é enorme.
Por outro, ela tem gerado um temor, não propriamente inédito, de que seja usada para propósitos mais perigosos e lesivos. Esse temor ganha corpo com propagação exponencial de notícias de fraudes no mercado de criptoativos, que já lesaram milhares de pessoas em todo o mundo, com destaque para o Brasil.
O objetivo deste texto é responder a algumas dúvidas sobre esse mercado, apontar algumas das razões pelas quais essas fraudes acontecem em número tão elevado e, por fim, esclarecer se elas devem ser encaradas como uma evidência contra a criptoeconomia em si ou se, ao contrário, trata-se de um problema que pode ser resolvido com uma regulação inteligente e que observe os limites e funções do direito.
Criptoeconomia: ideais
O uso da criptografia na economia, sobretudo no mercado de criptoativos, é rebento de movimentos libertários, para os quais, por definição, o Estado (e, logo, a regulação) é um mal desnecessário.
A desestatização do dinheiro, intento inicial do Bitcoin, não é senão esse ideal libertário colocado em prática: ao invés de uma moeda criada por Bancos Centrais e dependente do reconhecimento deles, defendeu-se o uso de uma moeda cuja única chancela estaria em chaves criptográficas, em tese, acessíveis a todos.
Como a história do dinheiro evidencia, faltava apenas o reconhecimento público e generalizado para que ela, de fato, substituísse o papel-moeda tal como ele é concebido.
Desestatização como liberdade, mas também como privacidade, eis o lema libertário aplicado aos criptoativos (sobre o tema, ver, MORAES, Felipe Américo. Bitcoin e Lavagem de Dinheiro. Curitiba: Juruá, 2022).
A criptografia, afinal, asseguraria que a criação da moeda se daria independentemente da chancela oficial de qualquer Estado e que o uso dela aconteceria longe de qualquer sistema de vigilância.
A criptoeconomia, então, tem vinculação à ideia de um Estado ausente e, de certa forma, a um ambiente anárquico, de modo que poderia até mesmo parecer contraditório propor a regulação desse mercado.
Mas, uma vez que ela invade e passa a dar as cartas da economia e dos negócios jurídicos que acontecem ao redor do mundo, com impactos significativos na vida de milhões de pessoas, é possível defender e sequer imaginar um cenário de desregulação?
Para que, afinal, serve a regulação e, logo, o Direito? Ele deve ter algo a dizer para a criptoeconomia?
Segurança jurídica e proteção da confiança: novos modos de usar
O direito tem a função de trazer segurança jurídica. Embora pareça tautológica, a frase quer dizer que o direito, no modo como ele é escrito e aplicado, deve ser suficiente para indicar a todos nós o que pode, o que deve e o que não pode ser feito.
É a partir dessas indicações que, por meio das normas jurídicas e da interpretação delas, legisladores e tribunais dão, nós traçamos planos para as nossas vidas.
Criamos expectativas, por assim dizer. É para isso, essencialmente, que servem as regras. O direito deve respeitá-las, porque todos nós, ao formarmos essa expectativa a partir do texto delas, confiamos nesse sistema. O direito deve proteger essa confiança.
Idealmente, o mercado de criptoativos trabalha com outro tipo de confiança: a confiança na criptografia e na segurança que ela proporciona.
Sua ideia é que os usuários sejam tratados com autonomia a ponto de não dependerem do Estado e, logo, de regras jurídicas em que possam ou devam confiar. Não à toa, muitos dos seus players foram e ainda são contra propostas de regulação do setor. Será mesmo que esse raciocínio é procedente?
Parece-me que não. Todo mercado, como toda relação social, precisa de regras – e mais, de regras que sejam exigíveis – para se estabilizar.
Seu jogo deve ser jogado de acordo com o que os jogadores esperam dele. Sem regras, não há nada a se esperar a não ser o caos e o jogo sujo, o que compromete o próprio jogo. O direito (e as normas jurídicas) vem para colocar ordem nesse caos. E não deve ser diferente com o mercado de criptoativos.
A segurança fornecida pela criptografia é de natureza diversa da segurança que o direito, só ele, é capaz de oferecer.
A criptografia pode assegurar que João comprou uma unidade de um criptoativo de Maria, quando o negócio já foi de fato concluído, mas as etapas anteriores, que incluem, inclusive, o lançamento de criptoativos no mercado, as movimentações de mercado feitas com o preço desses criptoativos (desde que não sejam stablecoins), assim como os atos de aquisição de criptoativos por exchanges, após o investidor tê-las contratado e transferido seu dinheiro para elas, não podem ser garantidas apenas pela criptografia.
Aqui, ela pode fazer muito pouco. Deixar que os players, muitos deles em situação de assimetria informacional, resolvam esses problemas por conta própria é a receita para um ambiente de incentivo à trapaça, às fraudes e à perda de confiança no próprio mercado.
Esse tipo de segurança – e, logo, de confiança – a criptoeconomia autorregulada não traz. Essa segurança, de natureza propriamente jurídica, não vem senão com boas regras regulatórias.
Fraudes com criptoativos: ambiente e incentivos
As fraudes com criptoativos têm se multiplicado, e boa parte delas na franja do limbo regulatório em que atualmente o Brasil está paralisado.
Afinal, embora sejam vários os projetos de lei visando a regular os criptoativos, nenhum deles chegou a ser aprovado.
Hoje, então, não se sabe se os criptoativos são valores mobiliários, caso em que seriam regulados pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários), ou ativos financeiros, caso em que seriam regulados pelo Banco Central, ou, ainda, se ostentam natureza híbrida, o que ensejaria uma regulação dúplice ou multipolar. No limbo, não são propriamente regulados por ninguém.
Não é raro que fraudadores se valham desse vácuo legislativo para lesar um público muito amplo de pessoas que, acertadamente interessadas no potencial do mercado de criptoativos, desejam investir nele.
Há vários contratos de investimentos com criptoativos que, dentre suas cláusulas, estabelecem que os ativos que estão sendo negociados não são sujeitos a nenhuma regulação, procurando se valer desse fato para afastar qualquer hipótese de responsabilização pela variação dos ativos negociados ou mesmo pela inadimplência quando o cliente requisita a devolução deles.
Não raras vezes, esses criptoativos foram criados pela própria empresa que se divulga como exchange, o que significa que ela procura um álibi, inclusive, para movimentar aquele ativo como bem entender.
Mesmo que essas disposições contratuais não consigam afastar a responsabilização do fraudador, a falta de regulação, a um só tempo, permite a criação desses arranjos grotescos e dificulta a cobrança judicial por parte dos credores lesados.
É que, no Judiciário, a situação, por vezes, pode ser desesperadora: já são várias as decisões judiciais que usam a ausência de regulação dos criptoativos (e a falta de reconhecimento estatal deles) como argumento para negar a execução de contratos lastreados em criptomoedas, mesmo que esses contratos sejam vinculados a aportes feitos com o real brasileiro.
A conclusão é que faltaria a liquidez necessária para se fazer a conversão. A lógica é a seguinte: se o Estado brasileiro não reconhece aquele ativo – e a sua cotação –, não é possível convertê-lo para reais de maneira segura, ao menos não sem antes um processo de conhecimento que é, sempre, muito mais demorado.
Como, no entanto, frequentemente se está diante de fraudadores com inúmeros credores, no final das contas o uso deliberado de um contrato de adesão mal elaborado pelo fraudador, somado ao atual limbo regulatório, acabam por beneficiá-lo. Ele literalmente se beneficia da própria torpeza.
Por que regular
A regulação é o direito operando na prática, estabelecendo as regras do jogo, e, com isso, os limites que os jogadores não podem ultrapassar. Ela estabelece as expectativas que esses jogadores poderão legitimamente firmar e a confiança com que poderão contar.
É condição de possibilidade e instância reflexiva por excelência desse mercado. Ela tem como ponto de partida um feixe de perguntas existenciais: para que esse mercado deve existir? Que funções ele deve ter? Que normas jurídicas deve cumprir? Que valores não pode violar?
Mercado e economia, afinal, não existem por si mesmos, mas para servir a demandas e anseios sociais que, em sua ausência, não seriam atendidos. Com a criptoeconomia, não pode ser diferente.
E, dentre as demandas a serem atendidas por qualquer mercado marcado por complexidades técnicas em que sejam alocados recursos de terceiros, está, seguramente, a de oferecer arranjos de combate a fraudes que a criptoeconomia, sozinha, é incapaz de oferecer.
Sobre o autor
André Portugal é advogado, sócio do Klein Portugal Advogados. Ele é mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e professor de Teoria da Decisão Judicial do FAE Centro Universitário.
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