Imagem da matéria: Jorge Stolfi, o professor da Unicamp que se tornou um dos maiores críticos do Bitcoin do mundo
Jorge Stolfi se formou doutor em Ciência da Computação em Stanford (Foto: Wikipédia)

“Meu conselho é que você arrume outro emprego o quanto antes. Você não quer carregar uma fatia da responsabilidade de ter induzido milhares de pessoas a queimar as economias numa loteria maluca”, me disse via Twitter o professor da Unicamp Jorge Stolfi.

Stolfi, 72 anos, que é um dos principais pesquisadores em ciência da computação do Brasil, se firmou como o mais reconhecido crítico do mercado de criptomoedas e Bitcoin no país. Como é padrão na cultura cripto, é pelo Twitter que dispara suas críticas — onde é seguido por pela realeza do setor como Vitalik Buterin, criador da Ethereum; Michael Saylor, fundador da Microsatrategy; Kris Marszalek, CEO da Crypto.com; e Justin Sun, fundador da Tron.

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Stolfi diz que criticar o Bitcoin é um “passatempo”, mas trata-se de um hobby ao qual se dedica com vigor — tuíta várias vezes ao dia e quase sempre sobre o tema. No passado, ele assumiu outras cruzadas como a fragilidade da segurança das urnas eletrônicas.

Um dos pontos principais de Stolfi é que o Bitcoin não pode ser considerado uma moeda, já que sua utilização como meio de troca é baixíssimo.

“Todos os lugares que aceitam Bitcoin, não aceitam Bitcoin. Eles aceitam a moeda nacional, seja o dólar, o euro, etc… Um intermediador faz a conversão e paga na moeda nacional. Os lugares que de fato aceitam Bitcoin são realmente muito poucos”, aponta.

Somado a isso, o professor sempre afirma que 99,99% das pessoas que compram Bitcoins, fazem isso na esperança de ter lucro. E esse lucro só seria possível com a entrada de mais pessoas, o que para ele caracterizaria o esquema Ponzi.

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“Satoshi errou feio, porque ele achava que inflação era uma coisa ruim. O resultado é que a moeda é completamente inutilizável porque como não tem inflação, as pessoas em vez de usarem a moeda, investem. E isso faz com que a moeda fique inútil como moeda de fato”, diz.

Sobre isso, exemplifica: “Você não pode contrair uma dívida em Bitcoin e amanhã o preço do BTC sobe 10% e aí você tem que trabalhar 10% mais para pagar essa dívida”.

Questionado se um sistema de pagamento descentralizado é uma utopia, o professor vai mais na raiz da questão: “É uma utopia num nível muito mais básico. Os cypherpunks imaginam a internet como sendo uma espécie de um recurso natural. Mas é um serviço operado por três ou quatro companhias de telecom em cada país. Se o governo quiser cortar seu acesso ele corta, se ele quiser mapear todos os pacotes que vão para sua máquina ele faz”.

Quem é o professor da Unicamp

Stolfi tem mestrado em matemática aplicada na USP e doutorado em Ciência da Computação pela Universidade de Stanford. É professor titular do Instituto de Computação da Unicamp e em 1996 obteve a livre-docência, que é o mais alto grau de titulação que um acadêmico pode chegar.

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Em maio, mostrou a dimensão de sua importância na ciência da computação ao fazer um chamado em seu Twitter: “Todo cientista da computação deve ser capaz de ver que criptomoedas são sistemas de pagamento totalmente disfuncionais e que a ‘tecnologia blockchain’ (incluindo ‘smart contracts’) é uma fraude tecnológica. Vocês poderiam por favor dizer isso em voz alta?”.

No mês seguinte um grupo de 26 cientistas da computação, incluindo Kelsey Hightower, engenheiro chefe do Google Cloud, enviou uma carta aberta ao Congresso dos Estados Unidos afirmando que as criptomoedas tem potencial de danos enormes à população e pouca ou nenhuma utilidade prática.

A carta foi endossada por 1.500 acadêmicos e o jornal El Pais afirma que Stolfi, um dos principais 26 signatários, foi a força motriz por trás do movimento.

Sua influência vai para além do Twitter, bolhas cripto e de cientistas da computação. Quando quiseram buscar um crítico das criptomoedas, Deutshe Welle e El Pais, os maiores jornais de Alemanha e Espanha, foram atrás de Stolfi.

A revolta que culminou na carta ao Congresso não foi o único efeito prático da militância de Jorge Stolfi. O jornalista australiano David Gerard, que cobre o mercado de criptomoedas de um ponto de vista crítico, afirma que foi uma manifestação do cientista brasileiro que fez o órgão regulador do mercado de capitais dos EUA rejeitar um produto.

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“Ele enviou avisos escritos sobre as fraudes financeiras em cripto para entidades regulatórias como a SEC e, em pelo menos, um caso pediram para que ele falasse mais. Eu estou convicto que os documentos de Jorge foram uma das razões pelas quais o ETF de Bitcoin dos irmãos Winklevoss foi recusado”, diz Gerard.

O jornalista conheceu o brasileiro em 2014 em um fórum no Reddit (r/buttcoin :-). “Jorge já estava lá, publicando comentários detalhados e memoráveis sobre como o Bitcoin é inepto do ponto de vista técnico”.

O homem com 26 horas no dia

Quando Stolfi estudava em Stanford, uma lenda circulava sobre ele: o cientista teria um relógio que marcava 26 horas no dia para que seu horário de dormir sempre mudasse e assim ele teria uma onipresença nos laboratórios.

APassou dez anos na Califórnia sem dirigir. Sua esposa, Rumiko, o levava e buscava da universidade. Não era raro os colegas chegarem para trabalhar de manhã e a companheira do brasileiro estar lá esperando: Stolfi não estava chegando — sequer tinha ido embora da noite de trabalhos.

As anedotas foram contadas pelo seu professor em Stanford, Leo Guibas, matemático grego naturalizado americano, em depoimento no aniversário de 60 anos de Stolfi em 2010. O orientador do brasileiro o descreve como um “trabalhador incansável” e um cientista com quem tinha relação mais de colega do que de mestre.

“Jorge comibina uma profunda intuição matemática com uma notória habilidade para programação. Muitas pessoas tem ou outro, mas a combinação é rara”, afirma Guibas.

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Críticas ao criador do Bitcoin

A baixa adoção do Bitcoin como meio de pagamento não é contestada por ninguém. Mas os defensores apontam o valor está no fato de ter resolvido a questão de ser um meio de transferência de um ativo sem a necessidade de uma entidade centralizada e que seja imutável — a pessoa não pode gastar o mesmo bitcoin duas vezes ou desfazer um envio.

Stolfi afirma que esse também está longe de ser o caso. Mas primeiro é preciso um contexto da história da ciência da computação.

O professor conta que a criptografia de chave dupla foi criada ainda nos 70 e era usada para que assinaturas digitais fossem possíveis sem uma entidade centralizadora. A comunidade tentou então aplicar o conceito para um sistema de pagamento.

“Ficaram remoendo isso até 1994 e provaram que isso não era possível. Porque se você tem uma rede e metade, ou às vezes até um terço dos membros, tiver vontade de sabotar, ela consegue impedir que os outros honestos não consigam chegar a um acordo. Para isso você só precisa de metade dos nós”, afirma.

O professor diz que para certo problemas, como compartilhamento de torrents, o sistema funcionou por não ter grande incentivo para um sabotador. Já em um sistema de pagamentos, a recompensa por uma manipulação fica muito mais evidente.

“Isso foi em 1994 e os cientistas de computação nunca mais pensaram nesse problema”, pontua.

Em 2009, Satoshi encontrou uma maneira de contornar esse problema. Na concepção dele, segundo Stolfi, seria muito caro tomar conta de mais da metade da rede pelos custos com compra de computadores, energia elétrica e tempo e esforço.

O criador do BTC imaginaria uma massa pulverizada de milhares ou milhões de nós. E é aqui que Stolfi vê um problema: os pools profissionais de mineração.

“Do jeito que a economia desse negócio se formou, inevitavelmente os mineradores se juntaram em pools e cooperativas. Então hoje em dia três cooperativas têm mais de metade do poder computacional. E quem decide o que vai ser minerado e como são as cooperativas”, diz.

Segundo dados do BTC.com, atualmente três pools de fato somam mais de 50% do hashrate usado na mineração: Foundry USA com 23,2%, AntPool com 18,9% e F2Pool com 14,8%.

Cruzada contra as urnas eletrônicas

Antes da cruzada contra o Bitcoin, o cientista Jorge Stolfi estava envolvido em outra missão: provar que o sistema de votação brasileiro pode ser manipulado com até certa facilidade. O professor da Unicamp se tornou uma das principais vozes, muito antes do presidente Jair Bolsonaro e do candidato derrotado em 2014 Aécio Neves passarem a jogar sombra sobre o sistema eleitoral brasileiro.

No dia 4 de dezembro de 2008, Stolfi foi convidado para falar em uma audiência pública da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. O professor disse aos deputados que o sistema tem “riscos inerentes que são muito sérios e incontornáveis. Riscos de fraudes feitas por pessoas internas ao sistema, que não podem ser detectadas antes, durante ou depois da eleição”.

Em entrevista ao portal G1 no ano de 2006, Stolfi defendeu que as urnas passassem a ter uma impressora, que imprimiria o voto através de uma janela de vidro e o recibo seria depositado em uma urna lacrada. Esse depósito só seria aberto em caso de contestação dos resultados.

Em um artigo publicado em seu site, Stolfi diz que a totalização não é o problema, nem invasões de hackers.

“O problema é que o software da urna pode ser facilmente adulterado, antes da eleição, de modo a desviar uma percentagem arbitrária de votos de um candidato para outro(s) — em todas as urnas do país ou de uma região eleitoral. Nesse tipo de fraude “por dentro”, o eleitor não percebe o desvio (a urna mostra um candidato mas registra o voto no outro), e todos os relatórios que a urna imprime são consistentes entre si — mas os com números falsos. Então, mesmo que a totalização no TSE esteja correta, o total estará fraudado”, diz.

Mais de uma década após suas manifestações públicas sobre as urnas e com um cenário muito mais tenso nesse tema, Jorge Stolfi mantém seu ponto.

“Continuo mantendo tudo o que escrevi sobre a urna eletrônica brasileira: uma merda completa, a pior do mundo. Mas abandonei essa cruzada há anos. Não há esperança de resolver o problema enquanto as eleições continuarem a ser operadas pela Justiça Eleitoral. O objetivo de qualquer eleição é convencer os perdedores de que eles não tem o apoio da maioria, e, portanto, devem se conformar com a derrota e aceitar o vencedor. O grande mal das urnas eletrônicas do TSE é justamente esse: como é impossível investigar fraudes, o perdedor de qualquer eleição pode alegar (sinceramente ou não) que houve fraude, e com isso justificar a rejeição do resultado e a tomada de poder pela força”.

Entre um algoritmo e outro, uma piada

O trabalho acadêmico de Stolfi é voltado para a computação gráfica e processamento de imagens. O cientista está trabalhando em um projeto que aplica conceitos matemáticos no estudo do cérebro e também fazendo algoritmos para impressão 3D.

Sua jornada é longa: entrou em 1969 na USP, quando existiam três computadores no Brasil, sendo um deles na universidade. Obteve um estágio no centro de computação e foi aí que começou uma dedicação de uma vida inteira.

“Eu me formei engenharia eletrônica, mas de eletrônica mesmo sei pouco, pois passei todo o tempo programando no computador”, relembra.

À época, o Brasil não tinha um currículo para ciência da computação e o modo de ficar mais próximo do campo era estudar a linguagem do universo. Stolfi fez então mestrado em matemática aplicada na USP.

Foi uma década depois, em 1979, que pôde enfim estudar de fato o que queria: foi para a Califórnia cursar o doutorado em Ciência da Computação.

O doutor por Stanford afirma que ficou sabendo tarde do Bitcoin, só em 2013, mesmo que isso tenha sido a primeira infância da criptomoeda.

É possível ver que o professor se diverte em sua cruzada. No dia 24 de agosto usou uma metáfora jocosa no Twitter para definir o Bitcoin e seus amantes.

“Imagine ser dono de um acre de terra no Arizona no meio do nada, que vale talvez US$ 2 mil. Você então gasta um bilhão de dólares cavando um buraco de uma milha de profundidade e leva toda a terra e as pedras para a Flórida. Daí você gasta outro bilhão de dólares levando a terra de volta para seu terreno, tapando o buraco e nivelando. Você pensa que pode vender esse terreno por US$ 2 bilhões de dólares ‘porque é o que custou para chegar nesse estado’? Bem, se você conversar com um crente no Bitcoin, talvez você ache que sim….”

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