Imagem da matéria: A busca da nova ordem mundial pela China e o renminbi digital
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Desde o seu lançamento, em janeiro de 2009, o bitcoin se provou bastante funcional como mecanismo de transferência de montantes monetários furtivo à vigilância governamental. Por essa razão, já nos seus primeiros anos de existência foi adotado por milhões de usuários em todo o mundo como meio para realizar operações financeiras que escapassem de controles nacionais e internacionais.

Hoje, a isso também se prestam outras milhares de criptomoedas descentralizadas que, desde então, foram criadas sob a sua inspiração, baseadas em tecnologias como a criptografia e o seu inovador registro de informações, o blockchain.

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Por intermédio desses instrumentos, diariamente, inúmeras moedas governamentais são trocadas e capitais são enviados de um país para outro, livres — pelo menos a princípio — de interferências externas.

Principalmente por essas razões, já há alguns anos os bancos centrais de diversos países vêm estudando ativamente as propriedades dessas criptomoedas com vistas a entender os riscos que elas oferecem à estabilidade financeira nas suas respectivas jurisdições.

Primeiros estudos sobre uma CBDC

Cedo, porém, o Banco da Inglaterra, pioneiro nesses estudos, percebeu que as tecnologias das criptomoedas poderiam ser empregadas para tornar mais rápido e eficiente o desempenho das suas funções, desde que fossem adaptadas ao seu controle político.

Daí, em 2015, a instituição apresentou pela primeira vez a proposta de criação do que chamou de Central Bank Digital Currency (CBDC), uma moeda digital do banco central.

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Essencialmente, a ideia consistia em desenvolver um blockchain adaptado aos interesses da autoridade monetária: denominado na moeda nacional; centralizado e operado pelo banco central (em vez de descentralizado); e capaz de sustentar taxas de juros e transmitir para o público as suas políticas monetárias.

Nos anos seguintes, bancos centrais como o sueco, o uruguaio e o ucraniano testaram as suas CBDCs em condições reais, obtendo resultados considerados exitosos.

China saiu na frente

Não obstante, desde então, um deles despontou nessa corrida: o Banco Popular da China (PBoC). Não por acaso, pois as autoridades chinesas são extremamente ciosas da sua soberania monetária, a considerando — com toda razão — uma prerrogativa governamental inalienável que não hesitam em exercer sem reservas e que constitui o pilar central da sua estratégia de desenvolvimento e ampliação do poderio nacional.

Por isso, controlam o renminbi, a moeda chinesa, de forma ostensivamente centralizada, a subordinando inteiramente aos objetivos governamentais e a empregando como instrumento ativo de nacionalismo e isolamento do território monetário do país mediante restrições rigorosas para transações cambiais e internacionais.

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Para elas, vazamentos nesse sistema de controle de capitais, como os propiciados pelas propriedades furtivas do bitcoin e demais criptomoedas, são inadmissíveis, ameaçando o que definem como a “segurança financeira” do seu país.

Por essas razões, as autoridades chinesas atuaram com vistas a censurar a especulação com bitcoins e outras criptomoedas no território nacional, com resultados aparentemente questionáveis.

CBDC chinesa

A partir de 2016, porém, seguiram as pegadas do banco central britânico e começaram a declarar publicamente o seu intuito de “assumir a liderança” na inovação proporcionada pelas moedas digitais.

Em seguida, passaram a cogitar a instituição de um ‘renminbi digital’, declarando que ele deveria ser orientado pelos seguintes princípios: conveniência, privacidade e segurança para os usuários; manutenção da ordem social e repressão de atividades consideradas ilegais, como a lavagem de dinheiro e o financiamento de atividades terroristas; operacionalização e transmissão eficiente das políticas monetárias; e manutenção plena da soberania monetária, sendo uma moeda digital de curso legal, emissão, circulação, transação e conversibilidade controladas pelo banco central e seguindo os mesmos princípios administrativos da moeda tradicional.

Para desenvolvê-la, em 2017 o Banco Popular da China estabeleceu um Digital Currency Research Institute, recrutando especialistas em encriptação, blockchain e big data. Como produto dessa iniciativa, em abril de 2020 o banco anunciou o lançamento do renminbi digital, também conhecido por e-RMB, para testes em metrópoles como Shenzhen, Suzhou, Chengdu e no distrito de Xiong’an, em Beijing.

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Trata-se de uma CBDC de “uso geral” que substitui plenamente a moeda oficial, a representando digitalmente sob a paridade 1=1 e com plena conversibilidade interna, a ser utilizada em todos os pagamentos cotidianos, de taxas e impostos.

Alternativa ao SWIFT

Então, parte dos funcionários públicos dessas cidades passou a receber seus salários pelo e-RMB. Além disso, por seu intermédio, as autoridades vêm distribuindo milhões de yuans para usuários sorteados, familiarizando a população com o seu uso.

Ao lançar o e-RMB, o banco central afirmou pretender “otimizar e melhorar” o seu funcionamento com vistas a, no futuro, generalizar o seu uso e ser capaz de monitorar em tempo real os fluxos monetários, elevando substancialmente a sua capacidade de supervisionar e manipular as condições financeiras do país.

Todavia, engana-se quem pensa que os objetivos subjacentes à sua criação são meramente domésticos. Segundo a mídia estatal China Daily, com o e-RMB, as autoridades chinesas também objetivam criar um sistema internacional de pagamentos alternativo ao SWIFT, dominado pelo dólar e pela influência política dos Estados Unidos, suas instituições e aliados.

Com isso, pretendem que, futuramente, o e-RMB funcione como uma alternativa funcional ao sistema de compensações em dólares, atenuando o impacto de quaisquer sanções ou ameaças de exclusão que possam ser impostas pelos Estados Unidos a outros países ou a empresas de quaisquer origens.

Ademais, ainda segundo o China Daily, além de reduzir o risco de interferências estrangeiras nos seus negócios e interesses, para o governo chinês, o e-RMB também deverá facilitar o acesso de estrangeiros à sua moeda, promovendo a sua integração nas operações cambiais internacionais.

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Na sua visão, o e-RMB permitirá a coexistência de dois sistemas internacionais de pagamentos, um sob a égide do dólar e outro sob a moeda digital chinesa, que poderão operar cooperativamente ou, em caso de conflito, sob bases mutuamente exclusivas.

Controle sobre moeda e fuga ao dólar

Assim, evidencia-se que a criação do e-RMB não atendeu apenas ao interesse do governo chinês em estabelecer o seu domínio sobre as tecnologias que servem de base ao bitcoin e às criptomoedas, asseverando o seu emprego em favor dos controles monetários e da segurança financeira do país.

Ela também correspondeu aos seus anseios de escapar da hegemonia do dólar e projetar a sua influência monetária para o exterior, no limite, até mesmo questionando a supremacia dos Estados Unidos na atual ordem monetária internacional e erguendo uma nova ordem alternativa, centrada na China e comandada por ela.

Não por acaso, o surgimento do e-RMB mobilizou grande interesse no ano passado. Assim, relatório publicado pelo Deutsche Bank, o maior banco comercial da Alemanha, se referiu às moedas digitais como o “último instrumento de hard power”.

Para o Fundo Monetário Internacional (FMI), elas terão papel decisivo na reconfiguração do sistema financeiro global nos próximos anos, quiçá reposicionando as moedas hegemônicas.

Finalmente, segundo o Bank for International Settlements (BIS), órgão que reúne cerca de 60 bancos centrais, mais de 80% dos seus filiados possuem pesquisas em andamento e metade deles já progrediu para a experimentação e construção dos protótipos das suas próprias moedas digitais.

Assim, o e-RMB — que as autoridades chinesas afirmaram recentemente a intenção de lançamento pleno durante as Olimpíadas de Inverno de Beijing em fevereiro de 2022 — deverá ganhar companheiras em breve. Tudo isso demonstra que as Central Bank Digital Currencies estão prestes a se tornar uma nova fronteira nas disputas internacionais.

Por outro lado, mostra também que, com o surgimento das criptomoedas, a utopia do dinheiro apolítico absolutamente não se realizou. Ao contrário, pois as suas tecnologias começam a dar azo às moedas digitais sob comandos governamentais, subordinadas aos objetivos governamentais de política monetária, fiscal, de desenvolvimento e vigilância das transações privadas, com claras providências de controle social.

Bitcoin x governos

Assim, tudo indica que estamos assistindo ao advento da era das Central Bank Digital Currencies (CBDC). Então, as moedas digitais dominarão o nosso futuro, mas ao contrário do que desejavam os idealizadores do bitcoin, isso deverá acontecer por intermédio dos governos, não sobre ou contra eles.

Idealizadas e criadas com o intuito de enfraquecer os governos e empoderar os indivíduos, as suas tecnologias também se prestam perfeitamente para o contrário.

Sobre o autor

Daniel S. Kosinski é Doutor em Economia Política Internacional (PEPI-IE-UFRJ) e autor do livro ‘Bitcoin e criptomoedas: a utopia da neutralidade e a realidade política do dinheiro’ (Editora UFRJ, 2020)

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