Imagem da matéria: Entenda o plano dos EUA de entregar a indústria cripto “de mão beijada” aos grandes bancos
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“Só porque você está paranoico não significa que não estão atrás de você.” Esse ditado foi atribuído a muitos, desde o ex-secretário americano Henry Kissinger ao músico Kurt Cobain mas, atualmente, seria um lema adequado para a indústria de criptomoedas.

Em 2020, investidores de criptomoedas se convenceram que o governo americano tem algo contra eles.

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E com razão: uma série de decisões pela Comissão de Valores Mobiliários e de Câmbio dos EUA (ou SEC, na sigla em inglês) e por outros reguladores sugeriu que autoridades federais não são apenas indiferentes à indústria, e sim ativamente hostis.

A questão é por quê. Embora muitos defensores cripto insistam que o governo é corrupto ou incompetente, a realidade é que a administração Biden está elaborando uma estratégia engenhosa para domar uma indústria que considera como ameaça.

A expectativa é que o governo Biden emita nas próximas semanas uma ordem executiva pedindo às agências federais que regulem ativos digitais como bitcoin, ethereum e NFTs “como uma questão de segurança nacional”, conforme publicado pela Forbes.

Entrevistas com ex-reguladores e executivos de grandes empresas cripto, no entanto, revelam um plano sofisticado de não acabar com os criptoativos, mas sim se apropriar deles ao fornecer uma parte fundamental da indústria cripto (stablecoins) aos grandes bancos.

Assim, poderão domar a livre economia cripto, segundo reguladores.

“É uma doutrina muito bem-pensada sobre como impedir que a indústria cripto cresça muito rápido e demais’, afirma Maya Zehavi, empreendedora e investidora cripto que já aconselhou reguladores.

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Exatamente quem está por trás da estratégia? Ainda que muitos considerem Gary Gensler, o ambicioso presidente da SEC, como o arquiteto das políticas anticripto da administração Biden, sua influência é superestimada.

Na verdade, é a secretária do Tesouro Americano Janet Yellen, a senadora Elizabeth Warren e um grupo de veteranos do Federal Reserve que parecem estar no comando.

Segundo Zehavi e outros, a administração Biden não quer destruir completamente as stablecoins.

Em vez disso, o objetivo é separar o que esses legisladores consideram como operações “obscuras”, como Tether, enquanto integram as operações favoráveis, como Circle e Paxos, sob o escopo do sistema bancário americano.

Ações recentes por reguladores sugerem que o plano já está sob andamento. Agora, a pergunta é se a indústria cripto pode evitar pertencer aos mesmos grandes bancos que deseja abalar.

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Stablecoins: a chave para domar o setor de criptoativos

O bitcoin (BTC) nasceu em 2008, mas levou mais de uma década para que o governo americano levasse o cripto a sério. Quando finalmente o fez, foi por conta das stablecoins.

Segundo Jerry Brito, diretor-executivo da empresa sem fins lucrativos Coin Center, o anúncio, em 2019, de que o Facebook iria lançar sua própria moeda digital foi um momento crítico.

A empresa disse que a moeda, anteriormente chamada de Libra, seria uma stablecoin lastreada em uma cesta de moedas emitidas por governos.

O Facebook não foi o primeiro a ter a ideia de lançar uma stablecoin. Já em 2014, usuários cripto dependiam de tokens digitais lastreados nas chamadas moedas fiduciárias, como o dólar americano ou o euro.

Mas quando o Facebook anunciou que iria oferecer uma stablecoin para seus mais de dois bilhões de usuários, o Congresso prestou atenção.

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As ambições cripto da empresa representavam não apenas um novo produto, mas um desafio ao poder de governos sobre os recursos.

Conforme dito pelo advogado cripto Preston Byrne na época, “se o Facebook reunisse um exército, isso seria apenas um pouco mais hostil às pessoas dos Estados Unidos”.

Embora stablecoins ainda tenham de se popularizar, tornaram-se uma parte fundamental da indústria cripto.

Tokens como USDT da Tether e USDC da Circle fornecem uma proteção à volatilidade enquanto permitem que traders evitem as taxas que geralmente existem ao movimentarem dinheiro de volta a uma moeda tradicional.

E stablecoins facilitam a evasão de regimes fiscais e jurídicos que surgem toda vez em que um cliente chega nos “trilhos fiduciários” onde bancos tradicionais operam.

Tudo isso surge conforme o Tesouro Americano ficou sensível a desafios contra a sua soberania, incluindo iniciativas por seus adversários geopolíticos Rússia e China para enfraquecer o papel do dólar como a moeda mundial de reserva.

Embora a China tenha promovido seu yuan digital como alternativa, os antagonistas também estariam satisfeitos se o bitcoin ou outra criptomoeda substituísse o dólar no comércio global.

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Essas considerações geopolíticas ajudam a explicar a retaliação ao projeto Libra do Facebook (e às criptomoedas como um todo).

A repercussão política aniquilou a Libra, mas o amplo mercado de stablecoins está florescendo.

Atualmente, sua capitalização de mercado está em US$ 155 bilhões enquanto negociações envolvendo stablecoins totalizam mais de 70% de todas as transações cripto durante qualquer dia.

E isso pode ser apenas o começo. Em julho, Circle, a segunda maior emissora de stablecoins, disse a seus investidores que o valor de USDCs em circulação poderia atingir US$ 194 bilhões até 2023 – uma quantia que equivale ao PIB da Grécia.

Circle, aliada à gigante Coinbase, há tempos busca estar do lado certo dos reguladores – mesmo que a empresa tenha se envolvido em uma investigação pela SEC e em controvérsias sobre suas reservas.

Tether é perseguida por alegações mais sérias relacionadas a práticas suspeitas de contabilidade, além de questionamentos se algumas stablecoins são realmente lastreadas em dólar.

A empresa já foi multada em US$ 41 milhões pela Comissão de Negociação de Futuros de Commodities (ou CFTC) e em US$ 18,5 milhões pelo Estado de Nova York, além de estar sendo investigada por diversos órgãos federais por conta das exatas reservas de sua stablecoin.

Tudo isso fez com que stablecoins se tornassem o alvo principal da tardia tentativa do governo federal de supervisionar os mercados cripto.

A resposta inclui um relatório de janeiro do Federal Reserve que discute o potencial de uma moeda digital emitida por banco central (ou CBDC), mas conclui que o Fed não iria atuar sem um mandato nítido do Congresso e da Casa Branca.

Bem mais significativo foi um relatório publicado em novembro pelo Grupo de Trabalho do Presidente (ou PWG), um grupo interagências dos reguladores financeiros mais seniores do país, incluindo Yellen.

Intitulado “Relatório sobre Stablecoins”, o documento pediu que o Congresso aprovasse leis que exigem que emissores de stablecoins operem como bancos e restrinjam sua “afiliação com entidades comerciais”.

O relatório também afirmou que reguladores podem rotular emissores de stablecoins como “sistemicamente importantes”, uma designação criada em consequência da crise financeira de 2008 para supervisionar instituições que, na linguagem da época, são “grandes demais para fracassar”.

Poucas pessoas acreditam que os autores do relatório estão sérios sobre tratar stablecoins como grandes demais para fracassarem. Diferentemente da grande emissora AIG, que caiu nessa categoria, stablecoins não estão interligadas ao restante do sistema financeiro dos EUA.

Tether, USDC e Binance oferecem stablecoins à indústria cripto (Imagem: Shutterstock)

Steven Kelly, pesquisador do Yale Program on Financial Stability, destaca que a economia de US$ 155 bilhões das stablecoins é uma gota de água no oceano em comparação a fundos de mercados monetários que, atualmente, equivalem a quase US$ 5 trilhões e foram uma catálise de crises financeiras anteriores.

Nesse contexto, afirmações de que stablecoins apresentam uma ameaça existencial ao sistema financeiro parecem inconsistentes.

No entanto, existe pouca dúvida de que reguladores americanos consideram criptomoedas como uma ameaça a seu atual estado financeiro e acreditem que stablecoins são a chave para impedi-las.

Zehavi afirma que a estratégia da administração Biden é estrangular o mercado de stablecoins por meio de regulações.

O governo acredita que isso pode gerar novas oportunidades para a cobrança de impostos e também desacelerar o crescimento do amplo mercado cripto. Isso porque stablecoins são ferramentas que traders usam para sair e entrar de posições.

Assim, novas restrições para stablecoins podem criar atrito para traders e tornar a negociação de outras formas de criptomoedas inconveniente ou cara.

“Dê aos bancos”

Reguladores americanos podem impor leis, mas são limitados pela própria lei. O que querem fazer não é o mesmo ao que podem fazer.

Esse é exatamente o caso de Gensler, que pode estar de olho na vaga de Secretário do Tesouro.

Quando o assunto é a regulamentação de stablecoins, o presidente da SEC é mais como o Mágico de Oz (uma alegoria política sobre o controle do fornecimento monetário dos EUA) do que um policial superpoderoso.

Segundo muitos observadores jurídicos, a SEC não tem uma clara jurisdição sobre stablecoins, pois não são valores mobiliários.

Diferentemente de ações (ou grande parte das criptomoedas), pessoas não adquirem stablecoins com a expectativa de gerar lucro – um dos principais fatores no “Teste de Howey” da SEC para determinar se algo é um contrato de investimento.

Já que o valor de stablecoins é constante, é difícil afirmar que são um investimento.

De acordo com Brito, do Coin Center, o status jurídico das stablecoins é mais parecido ao dinheiro usado em transações no PayPal ou Venmo.

Nessas transações, clientes não enviam dólares verdadeiros entre si, mas dependem de empresas que debitam ou creditam suas contas usando fundos internos. Um dólar enviado via Venmo, ou uma stablecoin, atua como dinheiro, mas isso não significa que é considerado como um investimento supervisionado pela SEC.

A questão de quem deveria regulamentar stablecoins surgiu no relatório do PWG em novembro.

O relatório, assunto de uma audiência do Congresso Americano em 8 de fevereiro, nota que a SEC afirma que stablecoins podem ser classificadas como valores mobiliários, mas acrescenta que outra agência (o Federal Reserve) considera stablecoins como depósitos bancários que caem sob sua jurisdição.

Segundo especialistas, como Josh Mitts, professor de leis de valores mobiliários na Universidade de Columbia, o Fed tem mais energia política do que a SEC. “Se o momento chegar, o Fed vai ganhar”, disse Mitts.

Na verdade, parece que o Fed já ganhou. Uma fonte familiarizada com o rascunho do relatório sobre stablecoins afirma que Gensler pressionou pela inclusão de um texto que concede uma jurisdição nítida à SEC, mas o Departamento do Tesouro o rejeitou.

Em vez disso, a administração Biden pretende empregar controle sobre o mercado de stablecoins e, possivelmente, a ampla indústria cripto, por meio do Fed e duas outras agências bancárias: o Escritório de Controladoria da Moeda (ou OCC) e a Corporação Federal de Seguros de Depósitos (ou FDIC) – ambas têm imensa autoridade sobre os bancos do país.

“Existem muitas formas que esses reguladores bancários podem sufocar cripto se forçarem todos esses requisitos do setor bancário tradicional para o setor cripto”, afirma Mary Beth Buchanan, ex-advogada americana que, agora, é a principal advogada da empresa forense cripto Merkle Science.

Exemplos prévios do Fed colocando pressão sobre cripto inclui seu tratamento à Kraken e Avanti, duas empresas cripto que obtiveram alvarás bancários estatais no estado de Wyoming.

As empresas fizeram a solicitação há mais de um ano para receber a chamada “conta-mestre” do banco central (fundamental para operações bancárias federais), mas o Fed se negou a processar esses pedidos.

Recentemente, Jay Powell, presidente do Fed, justificou o atraso, alegando que as solicitações das empresas de Wyoming são “novas” e “paradigmáticas”. Cynthia Lummis, senadora de Wyoming, rebateu que a lentidão da agência é danosa e ilegal.

Enquanto isso, o OCC rejeitou solicitações de outras empresas cripto para receberem alvarás bancários federais que permite que obtenham seguros da FDIC – garantindo que instituições financeiras tradicionais, e não cripto, são as únicas que podem interagir com serviços bancários cotidianamente.

A consequência é que reguladores bancários podem conseguir o que querem: forçar stablecoins ao regime bancário tradicional, mas sem conceder espaço às empresas cripto.

“Vão apenas dá-las aos grandes bancos”, afirma um ex-executivo de Wall Street que, agora, lidera uma empresa cripto. “É uma conversa para boi dormir do JP Morgan.”

Jaime Dimon é o CEO do JP Morgan (Imagem: Wikipedia/Creative Commons)

Um discurso recente do líder interino do OCC Michael Hsu citou um documento de posicionamento pelo grupo de lobby Bank Policy Institute que pede pela restrição de acordos de “aluguel de alvarás”.

Esses acordos, que envolvem o pagamento a bancos para compartilhar suas alçadas regulatórias, se tornaram cada vez mais comuns e são a forma como muitas empresas e fintechs cripto conseguem operar legalmente.

Se o OCC forçar bancos a suspenderem acesso a esses alvarás, pode atrapalhar operadores de stablecoins.

Hsu, que substituiu seu antecessor favorável a cripto Brian Brooks, está atuando em um papel interino, mas parece estar exercendo uma enorme influência na administração Biden.

Provavelmente porque ele é um ex-funcionário do Federal Reserve, onde atuou bastante com Yellen e Nellie Liang, a atual subsecretária do Tesouro para finanças nacionais que também pressiona por regulamentação para stablecoins.

Juntos, os três ex-membros do Fed parecem estar direcionando a agenda que favorece bancos tradicionais que conhecem bem em vez dos pretensiosos emissores de stablecoins.

A campanha foi ainda mais impulsionada pela FDIC, onde progressistas aliados à senadora Warren tomaram a inédita decisão em dezembro de remover a presidente da FDIC, escolhida por Trump, do poder para estabelecer a agenda da agência.

A iniciativa, que desafia décadas de precedentes e gerou a renúncia da presidente, foi considerada por alguns republicanos como um “golpe”.

Enquanto isso, a influência de Warren também pode estar em uma recente ação coletiva contra a PoolTogether, enviada por um ex-participante da campanha de 2020 de Warren que havia investido US$ 10 no projeto cripto.

Se o panorama geral aqui estiver certo, de que agências bancárias estão conspirando para acertar em cheio uma indústria da qual não gostam, não seria a primeira vez que isso iria acontecer. Sob a anterior administração Democrata, a FDIC, o OCC e outros trabalharam juntos para realizar a “Operation Choke Point” (ou “operação ponto de estrangulamento”, em português), uma iniciativa controversa que fez com que as agências unissem seus poderes regulatórios para punir credores e vendedores. Alguns na indústria cripto temem que as agências estão reprisando esse comportamento quando o assunto é o mercado cripto.

Existem sinais recentes de que agências bancárias já começaram a exercitar seu poder contra a indústria cripto. Um ex-representante da CFTC sugeriu que uma “desbancarização oculta das cripto” está em andamento.

Ele fez o comentário como resposta a um tuíte do inventor do protocolo Uniswap, que afirmou que JP Morgan havia abruptamente fechado suas contas bancárias.

De qualquer forma, existem sinais de que os bancos estão contornando o mercado de stablecoins.

Incluem o gigante banco Barclays, que pagou para promover uma pesquisa de que uma abordagem “híbrida” é melhor para stablecoins, onde contas podem ser gerenciadas e operadas por fornecedores de serviços financeiros licenciados, como bancos comerciais.

A oportunidade para bancos pode ser enorme. Michael Saylor, o CEO defensor de bitcoin da MicroStrategy, previu que stablecoins logo irão sair de seu nicho cripto e se tornarem a principal ferramenta para que Amazon, Apple e Exxon gerenciem seus tesouros internacionais.

“Se você é uma pequena startup cripto, isso é um pouco assustador”, disse Saylor em um evento da Bloomberg. “Se você é Jamie Dimon [o bilionário CEO do JPMorgan Chase], já esperava por isso. Qual grande banco vai se mexer primeiro e quais empresas cripto vão cruzar o abismo?”

Há algo que possa ser feito para impedir a dominação das stablecoins?

Se Saylor e outros estiverem corretos, reguladores estão no processo de entregar a indústria de stablecoin de mão beijada para grandes bancos.

A expectativa é que, até o fim do ano, Circle e Paxos se tornem subsidiárias do JP Morgan e Bank of American, que têm dinheiro para adquiri-las e a papelada para operar em um setor rigorosamente regulamentado.

Essa é uma conclusão inevitável? Não necessariamente. “Será uma grande briga”, afirmou um executivo de uma operadora de stablecoins, que reconhece que os bancos estão com a vantagem.

O lobby bancário tem influência no capital há mais de um século, então é improvável que a indústria cripto (ou alguém) o expulse em breve.

No entanto, o mundo cripto começou a ganhar aliados no Congresso Americano em 2021 graças ao crescente número de milionários e bilionários em seus escalões e uma sofisticada campanha conduzida pelo seu principal grupo de lobby, a Blockchain Association.

Enquanto isso, nos últimos dois anos, houve um surgimento de stablecoins algorítmicas (uma tecnologia, como o Bitcoin, que oferece tokens de US$ 1 similares aos da Circle ou Tether, mas sem uma emissora centralizada e corporativa).

É possível que essas stablecoins possam estar um passo a mais no atual jogo de gato e rato entre reguladores e a indústria cripto.

Por enquanto, a administração Biden parece determinada em avançar com seu plano de dominar a indústria cripto ao conceder controle das stablecoins aos bancos.

E bancos parecem estar prontos para fazer sua parte: este mês, a indústria anunciou um consórcio para ajudar seus membros a emitirem e usarem stablecoins.

*Traduzido e editado por Daniela Pereira do Nascimento com autorização do Decrypt.co.

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