Na década de 1970, quase metade de um século antes de ele se tornar poderoso o suficiente para gerar medo por toda a indústria americana de criptomoedas, Gary Gensler era o timoneiro do barco da Universidade da Pensilvânia.
Diferente de corredores e ciclistas, remadores (como os remadores Olímpicos que seguem a regulamentação Cameron e Tyler Winklevoss) retrocedem.
O timoneiro, que não toca nos remos, olha para a frente para dizer a seus companheiros de equipe qual ritmo seguir, guiar seu processo e garantir que o barco não afunde.
Agora, oito meses após Gensler se tornar presidente da Comissão de Valores Mobiliários e de Câmbio dos EUA (ou SEC, na sigla em inglês), a indústria cripto do país ou está pronta para atingir rochas ou ter uma vitória gloriosa. E ninguém consegue dizer para onde Gensler a está guiando.
2021 foi o maior ano para a indústria cripto
O que começou como uma onda de altas de preço no fim de 2020, graças ao ambiente econômico da pandemia que se tornou em uma grande maré em 2021, fazendo com que o Decrypt tivesse candidatos de sobra para escolher a Personalidade do Ano.
As escolhas mais óbvias teriam sido Elon Musk, CEO da Tesla/SpaceX, que usou seus polegares para tuitar dogecoin (DOGE) e transformá-lo em um ativo multibilionário.
Ele impulsionou ainda mais os preços do bitcoin (BTC) ao estimular sua empresa de veículos elétricos a comprar US$ 1,5 bilhão em bitcoin em fevereiro, a maior aquisição feita por uma empresa listada em bolsa. Musk é a Personalidade do Ano da revista TIME.
Sam Bankman-Fried, o prodígio agora conhecido pelo acrônimo SBF, traz a mesma devoção à negociação cripto e jogos on-line que Musk faz ao tuitar.
O fundador da corretora de criptomoedas FTX dorme em um grande pufe para que possa ficar mais próximo de seu computador e, este ano, transformou sua habilidade com as Finanças Descentralizadas (ou DeFi) em um império, cujos fundos de sua corretora desembolsaram milhões para parcerias de marketing esportivo a longo prazo.
Em seguida, vem Nayib Bukele, o presidente populista de El Salvador.
Bukele, um ferrenho defensor do bitcoin, não queria deixar que seu país ficasse à mercê das políticas monetárias do Federal Reserve, desde quando El Salvador adotou o dólar americano como moeda nacional em 2001.
Então, ele criou um projeto de lei, apresentou-o à Assembleia Legislativa e tornou o bitcoin em uma moeda corrente. Quase da noite para o dia, salvadorenhos se tornaram bitcoiners, querendo ou não.
Mas Gary Gensler pode fazer todos os seus portfólios despencarem com alguns hábeis ataques – mesmo sem precisar segurar um remo. Ele rapidamente se tornou a pessoa mais importante para o futuro da indústria cripto e, por isso, é a Personalidade do Ano para o Decrypt.
O otimismo rapidamente sumiu
Em junho de 2018, quase uma vida atrás em anos cripto, Jay Clayton, predecessor de Gensler, declarou que o bitcoin não é um valor mobiliário, e sim atua como uma moeda soberana. Mas e ether (ETH) e as outras criptomoedas? Ele não tinha tanta certeza.
“Um token, um criptoativo onde eu te dou meu dinheiro [em troca] do fornecimento de um retorno… é um valor mobiliário e regulamos isso”, disse ele à CNBC. “Regulamos a oferta e a negociação desse valor mobiliário.”
Parece fácil, não é? Mas a indústria cripto não tinha tanta certeza de que leis da primeira metade do século eram flexíveis o suficiente para lidar com classes de ativos do século XXI.
Além disso, a agência-irmã da SEC, a Comissão para a Negociação de Futuros de Commodities (ou CFTC), também estava observando algumas moedas e tokens enquanto meia dúzia de outras agências federais (responsáveis por tudo, como o imposto sobre ganhos de capital para evitar a lavagem de dinheiro) fizeram pronunciamentos inconsistentes sobre regulações cripto.
Enquanto isso, o Congresso Americano focou em outras questões.
Foi uma bagunça regulatória. Projetos cripto alegaram desconhecer sobre como proceder, reclamando que a SEC não os deu orientações claras.
Os otimistas cripto acharam que Gensler seria a pessoa a consertar a bagunça
Afinal, Gensler, com um currículo que incluía Goldman Sachs, o Departamento do Tesouro dos EUA e a CFTC, era bem-entendido sobre a tecnologia.
Ele até mesmo ministrou um curso sobre bitcoin e blockchain no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (ou MIT) enquanto esperava pela chamada ao show principal: o governo americano.
Nas aulas, ele demonstrava fluência em contratos autônomos, descentralização e as grandes tensões entre sistemas tradicionais e o mundo da Web 3.
Finalmente, alguém entendia.
Gary volta para Washington
Stu Alderoty, conselheiro-geral da Ripple, disse ao Decrypt que “a indústria estava cuidadosamente otimista” que Gensler iria fomentar o diálogo, dada a sua familiaridade com o assunto (Alderoty tinha motivos para acreditar; executivos da Ripple estão brigando contra a SEC por seus tokens XRP desde dezembro de 2020).
Anthony Scaramucci, em entrevista ao Decrypt em março, estava confiante de que Gensler iria aprovar um fundo de índice (ou ETF) de bitcoin antes do fim do ano (levou sete meses e foi um ETF de futuros de bitcoin).
Gensler estava dizendo as coisas certas. Em uma audiência de confirmação ao Comitê Bancário do Senado, o senador Mike Rounds perguntou sobre criptomoedas. Gensler respondeu ao chamá-las de “catálise para mudança”.
Em seguida, ele andou na linha para garantir que ele promoveria a inovação enquanto garantisse que clientes estariam protegidos.
“O bitcoin e outras criptomoedas trouxeram novas reflexões para pagamentos e a inclusão financeira, mas também geraram novos problemas à proteção de investidores que ainda precisamos abordar”, disse Gensler. Rounds votou para avançar a nominação pelo comitê.
No entanto, em agosto, o deputado Patrick MccHenry, o principal republicano no Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos EUA, acusou Gensler de “uma tomada de poder sobre corretoras de criptoativos”, após o presidente da SEC ter dito à senadora Elizabeth Warren, uma grande crítica às criptos, que “reguladores devem se beneficiar de uma autoridade plenária adicional para criar normas e apresentar proteções à negociação e ao empréstimo com criptomoedas” – incluindo plataformas DeFi, que removem terceiros de transações.
Em outras palavras, Gensler disse que não era apenas os tokens que reguladores deveriam estar analisando, e sim as plataformas onde são negociados e emprestados.
“Existem muitos empréstimos acontecendo. Existem muitas negociações acontecendo”, disse Gensler sobre o setor DeFi em outubro. “Sem proteções, acredito que tudo irá acabar mal.”
E Gensler quer ser a pessoa que os protege.
Recentemente, a Bloomberg noticiou que Gensler havia passado bastante tempo convencendo o Departamento do Tesouro a afirmar a autoridade da SEC sobre stablecoins, os tokens lastreados em dólar que fornecem uma ponte de acesso das moedas fiduciárias à negociação financeira e descentralizada.
Isso apesar do fato de que stablecoins não foram criadas para aumentar ou diminuir em valor. No entanto, Gensler argumenta que devem estar sob a jurisdição de sua agência.
“A agressão e o esforço da SEC com Gary Gensler em criar uma apropriação de terras regulatória que todas as coisas relacionadas a cripto devem terminar na porta da SEC parecem ser o modus operandi”, afirmou Alderoty, compartilhando da mesma opinião que McHenry.
Nem todo mundo concorda que Gensler irá exceder seus limites. E plataformas de negociação cripto (desde a corretora listada em bolsa Coinbase à crescente corretora de derivativos FTX) apresentaram a proposta de haver apenas uma reguladora. Por que não a SEC?
“Acredito que se a SEC quisesse, provavelmente teria a flexibilidade em sua autoridade a encontrar a estrutura correta”, afirmou Kristin Smith, diretora-executiva do grupo de lobby Blockchain Association, em entrevista ao Decrypt.
“Eu acredito que o interessante será: Isso irá acontecer no próximo ano ou não?”.
Smith, que comanda um grupo de defesa, que conta com membros como os projetos DeFi Aave e Uniswap, junto com protocolos como Solana e corretoras como Binance, ainda se sente otimista em relação a Gensler.
“Concordamos com algumas das coisas que queremos ver, como proteção aos investidores e integridade do mercado. Acredito que esses são valores e objetivos que a indústria compartilha”, disse.
“Acredito que onde continuamos discordando dele é o tipo de ideia de que as regras são superclaras.”
Joon Kim, conselheiro-geral e membro do comitê da Mina Foundation, que promove o crescimento de um protocolo blockchain leve e uma moeda de mesmo nome, espera que a SEC foque menos em punir agentes da indústria após o fato e mais em criar regras no caminho.
“A escolha de Gensler significa duas coisas. Não podemos esperar que haja orientações úteis vindas da SEC durante seu mandato; e podemos esperar mais ações de fiscalização com base no mesmo conjunto de leis de caso usadas contra projetos de ICOs em 2017”, disse Kim ao Decrypt por e-mail.
Em 2017, projetos de internet dispararam ao criarem e venderem seus próprios tokens (em “ofertas iniciais de moeda” ou ICOs) que, em seguida, forneceriam utilidade teórica à rede que o projeto estava criando.
A SEC foi atrás de várias delas por venderem o que pareciam ser ofertas não registradas de valores mobiliários com base no “teste de Howey”, inspirado por um caso de 1946 em relação à venda de ações de um pomar de frutas cítricas.
Em junho de 2018, Jay Clayton havia dito ao Congresso: “Acredito que toda ICO que vi é um valor mobiliário”.
Isso agitou ainda mais a situação seguida da declaração por William Hinman, diretor de finanças corporativas da SEC, de que ether, criada por meio de uma ICO em 2014, tinha se “descentralizado o suficiente” e não deveria mais ser considerada como um valor mobiliário.
Converse com um número suficiente de pessoas no setor cripto e você ouvirá: a SEC precisa apresentar orientações mais transparentes sobre o que constitui um valor mobiliário. Mas também ouvirá: nosso token definitivamente não é um valor mobiliário.
Existe uma questão razoável sobre a possibilidade de a indústria querer esclarecimentos ou apenas condições mais favoráveis para poder operar.
Hailey Lennon, parceira da empresa de advocacia com foco em cripto Anderson Kill, afirma que existe uma percepção entre empresas cripto de que a SEC não é fácil de se trabalhar e é por isso que a indústria não quer que a agência focada em cripto.
“Algumas pessoas não querem que a SEC seja a principal reguladora do setor de criptomoedas nos EUA porque não parece que a SEC está explorando formas de resolver problemas na indústria”, disse ela ao Decrypt.
“Gary Gensler acredita que tokens, em algumas dessas corretoras, são valores mobiliários. Realmente, em qualquer dia, poderá haver investigações ou medidas coercivas contra muitas empresas no setor.”
Isso basicamente deixa a indústria onde estava há alguns anos, exceto com um xerife mais agressivo.
A pergunta é inevitável: “Tudo ficou pior sob o comando de Gensler?”, perguntou Alderoty. “Sem dúvidas, não ficou melhor.”
O pedido está vindo de fora da Câmara
A indústria cripto não é a única que acha que Gensler deveria ser mais claro – apenas um timoneiro daria direções bem deliberadas à sua equipe em vez de deixá-los remar rumo a um muro de pedras e repreendê-los por isso.
Hester Peirce, representante da SEC, uma das cinco líderes de agência (incluindo Gensler) que votaram em questões como a aprovação de um ETF de bitcoin, entende que existe espaço para melhorias.
“Nossa recusa contínua de fornecer clareza regulatória, junto com uma forte dependência em nosso programa de fiscalização, continua sendo um problema”, disse ela ao Decrypt via e-mail.
Ela creditou a liderança de Gensler ao aprovar um ETF de futuros de bitcoin, mas acrescentou: “O presidente Gensler expressou sua disposição em trabalhar com entidades para permitir que se registrem. Ele pode demonstrar sua seriedade ao tomar medidas concretas para desenvolver uma estrutura regulatória e funcional”.
A afinidade de Peirce pela inovação, combinada com uma abordagem regulatória e informada pelo liberalismo, a tornou em uma queridinha da indústria, conhecida como “Criptomãe” (o ex-presidente do CFTC Christopher Giancarlo é o “Criptopai” e Gensler ainda não tem um apelido).
Grande parte dos veteranos da indústria cripto a consideram – e não Gensler – como a melhor esperança em fornecer uma solução para as dores da indústria.
“Acredito que a [proposta] de Prazo de Tolerância 2.0 de Hester Peirce continua sendo a orientação mais útil e não adotada para a indústria”, disse Kim via e-mail, apesar de acrescentar que a situação ideal seria uma “nova agência federal, liderada por alguém que entende o suficiente (e, felizmente, aprecia) a tecnologia blockchain”.
Boa sorte com isso.
A proposta de prazo de tolerância de Peirce permitiria que projetos de criptomoedas tivessem um período de crescimento de três anos antes de estarem sujeitos a leis de valores mobiliários.
Se, durante esse período, forem capazes de se descentralizar para que não dependam mais da equipe fundadora para sua gestão ou promoção, podem obter um registro de valores mobiliários por completo.
Peirce não foi tão além, seja com Gensler ou seus colegas restantes, apesar de o deputado McHenry ter incluído a proposta em uma regulação recente.
A senadora Cynthia Lummis, a republicana de Wyoming conhecida por seu descontentamento com políticas monetárias dos EUA e seu evidente acolhimento ao bitcoin como uma reserva de valor, espera que Gensler e o Senado possam trabalhar juntos para criar melhores orientações à indústria cripto.
Lummis era uma dentre apenas três republicanos que votou para confirmar a escolha de Gensler ao Senado, citando a necessidade de inovação financeira nos EUA para que não perca a dominância para a China.
Apesar de um amplo sentimento de descontentamento na indústria sobre o desempenho de Gensler até agora, Lummis disse ao Decrypt que ela não mudaria seu voto.
“Ao longo dos últimos oito meses, achei Gary um servo inteligente e comprometido com quem eu espero continuar trabalhando”, disse.
Fora dos EUA
Se a senadora Lummis e a representante Peirce estiverem erradas e uma estrutura regulatória não estiver a caminho, não espere que os EUA (que possuem a maior economia do mundo) saiam na frente.
Líderes de empresas americanas têm receio de que a inovação cripto será no exterior e os EUA irão perdê-la para países, como Suíça e Bahamas, que têm estruturas mais favoráveis. E muitos grandes nomes do setor cripto, como Erik Voorhees da ShapeShift e Jesse Powell da Kraken, acreditam que os EUA já tenham estragado sua chance.
Para alguns, os EUA podem não ser esseciais. Do Kwon, fundador e CEO do Terraform Labs, alvo da SEC este ano por conta da negociação de valores mobiliários não registrados, recentemente disse à CoinDesk TV: “Não estou muito interessado em como políticas americanas se modelam em torno de cripto, principalmente stablecoins algorítmicas. Realmente não têm impacto na minha vida”.
Alderoty afirma que as ações da SEC não impediram a Ripple.
“Desde a abertura do processo pela SEC, a Ripple não teve um único cliente americano, mas tivemos o nosso ano mais forte da história da empresa em termos de nossa oferta de produtos e clientes institucionais que são instituições financeiras e fornecedoras de pagamentos acolhendo nossos produtos.”
Ele acrescentou o que parece ser uma ameaça: “Quando a indústria fala sobre essa inovação acontecer no exterior, deve-se acreditar”.
Talvez seja hora de o timoneiro pegar um remo.
*Traduzido e editado por Daniela Pereira do Nascimento com autorização do Decrypt.co.