Renan, o filho mais novo do presidente Jair Bolsonaro, abandonou seu cargo de embaixador e sócio do Myla, um metaverso “de direita” cuja criptomoeda nativa despencou poucos dias depois de ter sido lançada, potencialmente deixando centenas de brasileiros no prejuízo.
O principal chamariz do Myla era um jogo play-to-earn (no qual o usuário ganha criptomoedas jogando) que promovia o combate político de Renan. No jogo, que sequer foi lançado, os personagens “do bem”, como seu pai Jair Bolsonaro, lutam contra os inimigos do time “vermelho” e o vilão supremo, representado pelo ministro do STF e do TSE, Alexandre de Moraes.
Leia também: Filho de Bolsonaro promove metaverso que tem criptomoeda suspeita e Alexandre de Moraes como inimigo
Pouco após começar a circular no sábado passado (20) valendo US$ 0,079, o token MYLA entrou em queda livre. O token caiu 86% desde o lançamento para o valor de US$ 0,011 na tarde de quarta-feira (30).
Como mostram os gráficos do MYLA no Poocoin, a maior queda aconteceu logo no dia de esteia do token, quando sua cotação desabou de US$ 0,079 para US$ 0,02.
Flutuações bruscas de preço muitas vezes acontecem quando há despejo de tokens no mercado. Trata-se de um padrão que se repete em ativos de baixa liquidez que mascaram esquemas de pump and dump — golpe no qual criadores de um projeto fazem promessas falsas ou usam famosos para convencer pessoas a comprar um token para logo em seguida, despejá-los no mercado e lucrar às custas de outros investidores.
Renan Bolsonaro usou sua fama para influenciar seguidores a colocar dinheiro no Myla e participar da oferta inicial do token, vendido por ele como “inédito” no Brasil e uma “oportunidade de mudar de vida”.
“Você sabia que na internet hoje muita gente está ganhando dinheiro, especialmente dentro do metaverso? Você pode fazer uma renda extra lá também. A Myla Metaverse vai dar essa oportunidade, e eu vou te falar: eu tenho muito orgulho de ser embaixador dessa empresa”, disse Renan em um vídeo publicado no Instagram em 17 de novembro.
Esse vídeo (veja abaixo), assim como todas as publicações nas quais Renan promove Myla para seus 656 mil seguidores, foram excluídas por ele na noite de terça-feira (29).
A saída de Renan pegou muitos de surpresa, já que ele era o rosto do Myla, com a equipe do projeto afirmando que além de embaixador, o caçula do Bolsonaro também era sócio e cofundador da empresa.
Renan foi capaz de levantar pelo menos R$ 266 mil em apenas 24 horas para o projeto por meio da primeira venda de tokens que aconteceu assim que o Myla foi anunciado, dois dias antes de Bolsonaro perder o segundo turno da eleição presidencial para Lula.
A equipe do jogo disse ao Portal do Bitcoin no final de outubro que 532 pessoas adquiriram a criptomoeda no dia do lançamento do projeto. A compra mínima desta venda inicial de tokens era de R$ 500 e podia ser feita via Pix.
A polêmica saída de Renan Bolsonaro do Myla
Ao que tudo indica, Renan deixou o projeto Myla de forma súbita. No grupo do Telegram que reúne a comunidade brasileira do projeto, o advogado Maciel Carvalho, que representa Renan, deu a notícia com uma breve mensagem na noite de terça-feira:
“Estou passando para informar o desligamento do Sr. Renan Bolsonaro do Myla Metaverse. A partir do dia de hoje. Boa sorte a todos.”
Os membros do grupo acharam que a mensagem era falsa, e pediram o banimento do advogado, mas logo um administrador confirmou que a mensagem era verídica.
“Eu gostaria de ter feito um pronunciamento formal a toda comunidade, mas o advogado do Renan achou por bem se manifestar diretamente a todos sem prévio aviso. Feito isso, estamos todos cientes da saída do Renan de nosso projeto!”, escreveu Pedro Henrique, o CEO do Myla.
Ericris Souza da Silva, criador da Utility Labs, a empresa desenvolvedora do Myla, disse no grupo do Telegram que “nenhum dos DEVs estavam sabendo dessa atitude”, em referência a saída de Renan do projeto. Minutos depois, disse para a comunidade que eles não sabiam “nem um terço da missa” sobre o conflito ligado à saída de Renan.
No stories do Instagram, Renan oficializou sua saída com uma nota de desligamento: “Prezados seguidores, como é de conhecimento de todos, eu Renan Bolsonaro, configurava como Embaixador e Sócio do Myla Metaverso. Porém, por algumas divergências contratuais, decidi me desligar do projeto, bem como do contrato social.”
Leia Também
O Portal do Bitcoin tentou contato com a assessoria de imprensa do Myla e com o advogado de Renan Bolsonaro, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Uma das perguntas não respondidas pela equipe do Myla é sobre a participação de Renan Bolsonaro nos lucros da empresa. No grupo do Telegram, no entanto, uma representante do Myla garantiu que Renan não tem — e nunca recebeu — tokens do projeto:
As suspeitas da shitcoin de Renan Bolsonaro
Conforme mostrou reportagem do Portal do Bitcoin do final de outubro, a criptomoeda que até então era promovida por Renan Bolsonaro tinha uma série de características suspeitas.
Ao checar o MYLA no ApeSpace, plataforma que faz uma análise automática de contratos inteligentes de tokens padrão BEP-20, criados na Binance Smart Chain, dois alertas de segurança são logo apontados.
O primeiro é o fato de que o token não tem propriedade renunciada, ou seja, uma pessoa tem controle total sobre o contrato. Outro alerta é que não há propriedade permanente do ativo, o que significa que é possível atribuir um novo proprietário com privilégios de mudar a estrutura da criptomoeda.
O tokenomics descrito no whitepaper, que dá mais detalhes sobre a criptomoeda, também tem bandeiras vermelhas. A oferta de 100 milhões de tokens MYLA, por exemplo, é dividida de tal forma que os criadores do projeto controlam praticamente 90% do fornecimento da moeda. Ao acesso da comunidade, estão apenas 11% de tokens vendidos na fase seed e 1% de airdrop, com uso destinado ao jogo.
A concentração de tokens em poucas mãos abre brecha para esquemas de pump and dump. Esse é o motor por trás de parte significativa de criptomoedas sem fundamentos lançadas no mercado, as famosas shitcoins, que, entre outras características, está a promessa de valorização.
Esse tipo de estratégia também existe no MYLA. No Pitch Deck divulgado no grupo do Telegram do projeto, que já possui quase 8 mil membros, eles se comparam com o The Sandbox — um dos metaversos mais populares do mercado — para simular uma suposta capacidade do token valorizar mais de 636x.
A reportagem questionou no passado a equipe do jogo sobre essa promessa de valorização, mas eles não deram detalhes de como o cálculo foi feito para chegar a esse número.
“O valor é um exemplo baseado no mercado atual, caso ele se mantenha e o projeto atraia muitos investidores. Com adoção global, esse token pode ter uma valorização ainda maior, são apenas números para mostrar o potencial de valorização a longo prazo”, garantiu a equipe na época.
Um mês depois, a promessa de valorização se provou exagerada. Ao invés de subir, o MYLA perdeu 86% do seu valor desde o lançamento.
Utility Labs, a empresa por trás do MYLA
Além de Renan Bolsonaro, o site do Myla aponta outras seis pessoas envolvidas no projeto. Todas com pouca experiência no mercado cripto — pelo menos bem-sucedida.
O Linkedin de Pedro Henrique Caetano, apontado como CEO do Myla, não mostra nenhuma experiência profissional. Através do Facebook de Caetano, foi possível descobrir que até dois anos atrás, ele trabalhava com serigrafia. Antes disso, trabalhava com a fabricação de placas personalizadas.
O site do Myla traça um cenário diferente, apresentando o CEO como uma espécie de visionário do metaverso: “Myla foi idealizado por Pedro Henrique, CEO do Myla, três anos atrás apenas com um sonho. […] Pedro conheceu a Utility Labs, uma incubadora de projetos Web2 e Web3, no qual proporcionou que o sonho se tornasse realidade.”
Utility Labs, portanto, é a empresa desenvolvedora do Myla. Quando as vendas do token começaram no final de outubro, o usuário que comprava via Pix transferia o dinheiro para uma conta bancária da Utility Labs.
O CNPJ da empresa na Receita Federal mostra que ela foi aberta no início de setembro deste ano em Florianópolis (SC), declarando um capital social de R$ 10 mil.
Quem aparece como sócio-administrador da empresa é Ericris Souza da Silva, que já criou — e abandonou — outra criptomoeda, ligada ao agronegócio, chamada AgroCash X. Ele também está por trás da criação de outros tokens pela Utility Labs, chamados Texas Protocol e E-agro.
Recentemente, a Utility Labs aproveitou o hype da Copa do Mundo para lançar outra shitcoin no mercado chamada Doge Cup. Segundo o site, o token está sendo desenvolvido com a intenção de “gerar entretenimento, diversão e rentabilidade para os investidores”.
Tem uma denúncia? Envie para [email protected]