Oráculos, tal como definidos na antiguidade grega, seriam entes ou entidades que, flertando com aspectos de divindade, teriam o condão de prever o futuro.
Oráculos, no mundo dos criptoativos, são aqueles que se propõem a conectar o mundo on-chain ao mundo off-chain, ou seja, elemento fundamental à tokenização.
O que isso tem a ver com o Parecer de Orientação CVM 40/2022?
Basicamente, sabermos se o novo parecer “prevê o futuro” quanto àquilo que depende ou não de observância da regulamentação em termos de tokenização e oferta de tokens ao público.
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Aqueles que enveredam pelo ecossistema da tokenização, dos criptoativos e dos tokens, já há algum tempo, precisam ter cautela na emissão e oferta destes ativos digitais ao público, pois, a depender do conteúdo – dos direitos econômicos subjacentes e das funções desempenhadas – este token poderá ou não ser valor mobiliário, daí por que merece aplausos a menção feita pela CVM ao fato de que tokens seriam “títulos”.
Os tokens, de forma bastante objetiva, são envelopes de direitos, que podem ou não se classificar como valores mobiliários. Contudo, o Parecer não deixa claro se ainda que o seu conteúdo (paridade, lastro, colateralização, conjunto de direitos) não seja um valor mobiliário, dependendo do modo como ocorrerá o seu “empacotamento”, tal token poderia vir a ser considerado como valor mobiliário distorcendo sua natureza jurídica originária .
E é nesse específico tocante que se insere o Parecer de Orientação CVM 40/2022, que consolida o entendimento da CVM sobre as normas aplicáveis aos criptoativos que forem valores mobiliários.
Não temos aqui um parecer que traz regras inovadoras. Muito pelo contrário. Apesar de ter sido recepcionado com surpresa e como elemento novo por alguns, fato é que aqueles que já navegam dos mares de empreendimentos criptográficos e (quase) descentralizados não enxergaram diretrizes genuinamente novas na avaliação da natureza camaleônica dos criptoativos, o que fica claro quando nos atentamos ao fato de que o parecer evidencia que a “CVM adotará abordagem funcional para enquadramento dos tokens em taxonomia que servirá para indicar o seu tratamento jurídico”.
Por isso, reforçamos: se quiseres prever o futuro, estuda o passado.
O parecer se propõe a organizar de forma sintética e sistemática o entendimento pretérito da CVM sobre o assunto. Aqui, portanto, não precisamos dos oráculos gregos, pois o texto normativo e o contexto jurisprudencial já se colocam como as respostas que precisamos para avaliação dos projetos envolvendo a emissão de tokens.
Apesar de não vislumbrarmos novidades em sentido estrito no que tange à qualificação dos security tokens, ora denominados asset-backed tokens, há de se reconhecer que o parecer é digno de elogios, na medida em que acalenta uma ansiedade mercadológica latente e evidencia uma postura amigável na análise do tema pelo regulador, o que, por óbvio, não significa ser conivente com projetos que sejam corrosivos ao mercado e à economia popular, os quais serão normalmente submetidos à persecução estatal e respectiva punição.
Sem prejuízo, afirmar que nada mudou, a nosso ver, não é suficiente, daí por que tomaremos a liberdade de, neste texto, destacar alguns tópicos que julgamos relevantes.
Os destaques do parecer da CVM
Em primeiro lugar, a despeito de a CVM alertar ao fato de que a definição trazida para o conceito de criptoativos busca apenas “delinear o objeto deste Parecer, sem restringi-lo taxativamente”, forçoso reconhecer um elemento interessante da definição positivada, qual seja, o fato de que criptoativos “são ativos representados digitalmente, protegidos por criptografia, que podem ser objeto de transações executadas e armazenadas por meio de tecnologias de registro distribuído (Distributed Ledger Technologies – DLTs)”. O regulador, inclusive, mostrou-se muito atento às discussões internacionais e de mercado sobre o assunto ao trazer, para a definição de criptoativos, o conceito da tecnologia empregada.
Não obstante, como esperado em um ambiente novo e que está em constante mudança, há uma diferença conceitual entre o conceito trazido pela CVM e aquele fixado pela Receita Federal do Brasil, quando a autoridade fiscal condiciona, na Instrução Normativa RFB 1.888/2019 o conceito de criptoativos àqueles ativos digitais “dotados de unidade de medida própria”. Este atributo (a unidade de medida própria) não compõe a definição de criptoativo trazida pela CVM, o que, a nosso ver, é positivo.
Em segundo lugar, relativamente à taxonomia, não merece reparos o entendimento trazido pela CVM. Inclusive, vê-se que referido órgão, a despeito de consignar o reconhecimento quanto à ausência de um “entendimento uniforme sobre a classificação” e como já falado anteriormente, está atento ao entendimento internacional (praticamente consolidado) sobre o tema.
O Parecer traz a seguinte taxonomia: (i) token de pagamento, que se comportaria como uma moeda, ainda que com esta não se confunda em sentido estrito; (ii) token de utilidade, enquanto meio para acesso ou aquisição de produtos ou serviços; (iii) token referenciado a ativo (asset-backed token), que “representa um ou mais ativos, tangíveis ou intangíveis”, dos quais são exemplos os security tokens, as stablecoins, os non-fungible tokens (NFTs) e os demais ativos objeto de operações de “tokenização”.
A título exemplificativo, a taxonomia acima já consta do próprio MiCA – Markets in Crypto-Assets, quando a norma europeia classifica referidos ativos digitais em: asset-referenced token; electronic money token ou e-money token; e utility token.
Novamente, a despeito da inexistência de uma inovação, a explicitação do acompanhamento desse padrão de taxonomia é algo a ser comemorado, pois alinha o Brasil às melhores práticas internacionais sobre o tema.
Um terceiro ponto digno de nota refere-se ao fato de que a CVM, de forma acertada, apresenta uma visão dinâmica (logo, não estática) quanto à natureza jurídica do token, uma vez que “entende que o token referenciado a ativo pode ou não ser um valor mobiliário e que sua caracterização como tal dependerá da essência econômica dos direitos conferidos a seus titulares, bem como poderá depender da função que assuma ao longo do desempenho do projeto a ele relacionado”.
Um token de utilidade cuja utilidade não é contemporânea à oferta pública (ICO, IDO, IEO, etc.), seria, na verdade, um instrumento de crowdfunding travestido de token de utilidade, por exemplo.
Este exemplo reforça que a análise quanto à taxonomia do token é dinâmica (e não estática), o que é confirmado pelo atual parecer da CVM.
Outrossim, um ponto bastante interessante que a autarquia trouxe no seu parecer é o item 5.2, que discorre sobre “Informações sobre Negociação, Infraestrutura e Propriedade dos Tokens”. Aqui a CVM recomenda a prestação de informações sobre o arranjo em blockchain, ou DLT, com linguagem acessível ao público.
Gostaríamos de chamar especial atenção à descrição da gestão da propriedade dos tokens. Em arranjos DeFi é comum que os próprios clientes tenham o controle das chaves privadas das suas carteiras, geralmente utilizando provedores de serviço de wallet para tal. Por outro lado, em arranjos operados por intermediários, tais como “exchanges” cripto, corretoras entre outros, é mais comum que a guarda das chaves privadas seja feita pelo próprio intermediário.
Quando falamos de arranjos que, necessariamente, envolvem o token no papel de criptoativo ativo em si, cabe mais uma ponderação: há intermediários que oferecem a opção de transferência dos criptoativos para carteiras fora de seu arranjo (comumente conhecido como wallet out), e há intermediários que somente oferecem as opções de compra e venda do token – não permitindo a transferência ativo para fora de seu arranjo.
Outro item que merece destaque são as regras e características do protocolo. É importante dar transparência aos investidores sobre em qual protocolo os tokens foram “mintados” e sobre se se trata de uma rede pública ou um arranjo privado. No caso de redes privadas, ou redes públicas com características de rede privada por conta de funções de permissionamento, é importante explicar quais são as regras de governança. Por exemplo, quem controla a entrada de novos membros no arranjo, qual o papel dos membros no que tange aprovação das transações, de que forma as informações são distribuídas entre os nós.
Seguindo a análise e em linha com as regras atualmente aplicáveis, a CVM adentra no tema das infraestruturas de mercado ao pedir, além da indicação de plataformas nas quais o token será admitido à negociação, se há administradora de mercado organizado autorizada pela CVM, e se há aplicabilidade dos serviços de depósito, compensação e liquidação, custódia e escrituração de valores mobiliários. Essa informação trará mais transparência aos investidores sobre quais tipos de infraestrutura de mercado estão envolvidas na operação, subentendendo possíveis dispensas que a estrutura possui ou se, de fato, não há envolvimento de nenhuma das entidades citadas.
Sobre a descrição das regras para identificação dos titulares dos tokens, aqui podemos inferir que a autarquia se interessa em saber se o arranjo conta com wallets individualizadas, permitindo o acompanhamento e o controle de titularidade de forma on-chain. Cabe ressaltar que wallets são endereços (ou seja, a chave pública), um conjunto de caracteres alfanuméricos que não trazem dados pessoais.
Por fim, a autarquia também sugere que sejam esclarecidos os controles de origem dos recursos utilizados para aquisição de tokens e compromisso com a comunicação de operações suspeitas. Sobre esse ponto específico, destaca-se a importância de políticas bem estruturadas de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financiamento ao Terrorismo, acompanhada de seus efetivos controles para aplicação da política no dia-a-dia da empresa.
Resumidamente, esse item específico do Parecer demonstra o alto nível de entendimento da autarquia com relação aos diferentes tipos de arranjo possíveis, tanto no caso de criptoativos, quanto no caso em que a tecnologia é utilizada como infraestrutura para aprovação de transações, compartilhamento de informações, etc.
Conclusões
Todo quanto exposto evidencia que, embora a tokenização em si “não esteja sujeita a prévia aprovação ou registro na CVM”, caso os tokens reflitam a lista taxativa prevista em lei ou, alternativamente, amoldem-se à noção de contrato de investimento coletivo (viés exemplificativo da norma) – mediante a aplicação do famigerado teste de Howey – os tokens emitidos deverão seguir os trâmites regularmente previstos para emissão de valores mobiliários, daí por que correta a afirmação trazida pela CVM no sentido de que “tanto os emissores quanto a oferta pública de tais tokens estarão sujeitos à regulamentação aplicável”.
Com a publicação do Parecer de Orientação CVM 40/2022, temos mais uma norma (em sentido amplo) que passa a compor o passado, ainda que redundante em alguns pontos, mas firme no propósito de esclarecimentos amigáveis, e que nos ajudará a prever o futuro.
Sobre os autores
Daniel de Paiva Gomes é sócio de VDV e Paiva Gomes Advogados e autor do livro Bitcoin: a tributação de criptomoedas. Doutorando (PUC) e Mestre (FGV) em Direito Tributário. MSc Candidate Nicosia.
Eduardo de Paiva Gomes é sócio de VDV e Paiva Gomes Advogados. Autor do livro Tributação da Impressão 3D, software e impressora 3D. Doutorando (PUC) e Mestre (FGV) em Direito Tributário. MSc Candidate em Nicosia.
Juliana Facklmann é Diretora Global de Regulação e Design de Produtos do Grupo 2TM. Professora do IBMEC. Coordenadora da frente de DeFi e Criptoativos do LAB Inovação Financeira. Mestre e Bacharel em Direito pela USP.
Paloma Sevilha é Diretora de Infraestrutura de Mercado e Produtos da BEE4. Coordenadora da Frente de Identidade Digital do LAB Inovação Financeira. Economista.