Fazem séculos que a a humanidade é obcecada pelas estrelas. Em setembro de 1962, o presidente americano John F. Kennedy anunciou a meta que os Estados Unidos enviariam pessoas para a Lua até o final da década. É um dos melhores discursos da história:
“Nós embarcamos neste novo desafio pois existe conhecimento a ser obtido e novos direitos a serem conquistados e estes devem ser conquistados e utilizados para o progresso de todas as pessoas. Mas por que a Lua? Por que escolher esse objetivo? Por que escalar a montanha mais alta? 35 anos atrás perguntaram por que voar pelo Atlântico? Nós escolhemos ir para a Lua ainda nesta década e fazer outras coisas, não porque elas são fáceis, mas porque elas são difíceis. Nós acreditamos que este objetivo serve para organizar e medir o que há de melhor nas nossas energias e habilidades, porque este desafio é um que estamos dispostos a aceitar, um que não estamos dispostos a adiar e um em que pretendemos vencer, assim como outros também”. John F. Kennedy, 35º presidente americano.
Apesar do discurso inspirador, deixa eu trazer a indústria espacial para a realidade. Analisando historicamente, a inovação no espaço está ancorada em gastos governamentais com defesa. Iniciada na Segunda Guerra, a tecnologia de foguetes nasceu com o propósito de criar misseis intercontinentais que poderiam garantir a capacidade de destruição mútua.
Durante a década de 60 a NASA chegou a ser 5% do orçamento do governo americano (hoje é menos de 0.5%) e uma boa parte destes recursos foi para pesquisas e desenvolvimentos que beneficiaram o departamento de defesa. Depois que os Estados Unidos ganharam a corrida espacial com a Apollo 11, a pressão orçamentária aumentou e o espaço perdeu a prioridade.
Os motivos para investir no acesso ao espaço são, de forma simples, três. Um de curto, outro médio e o último de longo prazo:
- Defesa, como explicado anteriormente
- Desenvolvimento de novas tecnologias derivado do esforço coordenado de avanços em múltiplas frentes. Por exemplo, tecnologias como previsão do tempo, teflon e GPS foram todas criadas originalmente para a economia espacial
- Ao se tornar uma sociedade multi-planetaria, a humanidade diminui drasticamente o risco de extinção
A indústria espacial
De acordo com a Bryce Tech, a economia espacial é estimada em c.US$400 bilhões de dólares, com expectativa de crescer em torno de 10% ao ano pela próxima década, isso sem assumir qualquer tipo de inovação tecnológica disruptiva que possa acelerar a demanda. Os principais componentes dessa indústria são:
- Satélites & Equipamento: isso inclui desde fabricação até serviços prestados pelo equipamento em órbita, como telecomunicação, rastreamento e segurança nacional.
- Orçamento Governamental para agências espaciais
- Lançamento de cargas ao espaço
Como mencionei, a indústria espacial sempre esteve muito ligada aos esforços de defesa nacional. Isso fez com que as principais fornecedoras de serviços e equipamentos de defesa também fossem as líderes na indústria espacial. Estamos falando de empresas como Boeing, Lockheed Martin, dentre outras. O produto era criado para o governo, principal cliente. Se a iniciativa privada quisesse, que comprasse o que o governo queria.
Isso fez com que o modus operandi também fosse transferido. Aqui temos um ponto importante, que é a forma como o produto é cobrado. Historicamente a indústria de defesa americana funciona com um modelo de “cost-plus”, em que o fornecedor cobra um preço baseado no custo acrescido de uma margem pré-acordada entre as partes.
Esse modelo tem uma falha, o desalinhamento de interesses. Enquanto o governo quer pagar o mínimo possível, o fornecedor ganha mais à medida que o contrato fica maior e não tem incentivo para ser mais eficiente; afinal, a sua margem esta travada por contrato.
Além disso, o número de fornecedores credenciados para fazer ofertas aos contratos do governo ficou tão baixo que as poucas empresas remanescentes se organizaram em associações para diluir custos fixos. Não vou chamá-las de cartel pois não quero ser processado, mas essa dinâmica não era saudável para a indústria. No caso dos serviços para exploração espacial, em 2006 a Boeing e Lockheed se uniram para criar a United Launch Alliance, que passou a deter o monopólio de foguetes.
Entramos no século XXI com uma indústria espacial com pouco incentivo à inovação e eficiência. Devido aos preços altos para lançar carga no espaço, a demanda era restrita, o que inviabilizava seu crescimento. Com baixo crescimento, poucos investidores e empreendedores estavam dispostos a criar empresas no setor.
Isso mudou devido a dois movimentos. O primeiro foi o surgimento de novas empresas no setor e o segundo foi uma profunda mudança na política do governo americano em relação a fornecedores.
SpaceX
Elon Musk fundou a SpaceX em 2002. Eu recomendo o episódio do Acquired sobre a história da companhia. Acho inevitável que um dia ela se torne um filme. Utilizando o capital de suas duas primeiras empresas, a Zip2 e PayPal, Musk começou com a ideia de atrair a atenção do público de volta para o espaço fazendo uma jogada de marketing em que ele enviaria algo para Marte.
Primeiro ele tentou comprar foguetes russos, mas depois chegou a conclusão que ele e seus sócios poderiam construir foguetes eles mesmos.
Musk tem um histórico de desafiar o status quo pensando em termos de primeiros princípios. Isso quer dizer que ele procura entender a razão pela qual as coisas são feitas, questionando dogmas. Conclusões como “mas sempre foi feito assim”, “é o padrão da indústria” para ele são péssimos motivos e as primeiras coisas que precisam ser mudadas.
Pouco tempo depois de montar a SpaceX, ele trouxe Gwynne Shotwell, uma engenheira com anos de experiência lidando com o governo americano como cliente. Shotwell tem o crédito de ter transformado o que era um sonho em um negócio com clientes, fornecedores e produtos. Atualmente ela é a Presidente da SpaceX.
Uma ajuda do governo
O foco da SpaceX era desenvolver um foguete que pudesse levar cargas ao espaço a uma fração do custo que as alternativas. Com menor custo, poderiam expandir o mercado potencial. Isso implicava repensar o design, materiais, cadeia de fornecimento e praticamente todos os aspectos de um foguete e das capsulas para transporte de carga.
A empresa passou por uma série de dificuldades financeiras. Por vários anos não tinha um produto, dado que o ciclo de desenvolvimento é longo. Em certo momento a SpaceX estava a semanas de ir a falência, com Elon Musk se preparando para vender a empresa ao Google.
Em 2006 a NASA, frustrada com seus fornecedores e o alto custo do modelo cost-plus decidiu criar um programa para o desenvolvimento de alternativas para transporte de carga para a Estação Espacial Internacional (EEI).
A SpaceX foi uma das duas empresas que ganhou este programa, chamado Commercial Orbital Transportation Services (COTS) e recebeu US$400 milhões para o desenvolvimento do Falcon 9. A própria NASA fez uma análise que se ela tivesse desenvolvido sozinha este novo foguete, teria custado mais de c.US$1.4 bilhões.
Esse programa era a primeira parte de uma mudança profunda na sua estratégia de suprimentos. Na época do programa Apollo e Ônibus espacial, a NASA era responsável pelo projeto inteiro do foguete e nave espacial. Eles contratavam fornecedores para cada um dos componentes, no modelo cost-plus. A NASA era a gestora do projeto. Depois de entregue o foguete, ela era a operadora. O custo deste modelo estava ficando impraticável.
Em 2008 ela criou o “Commercial Resupply Services”. Ao invés de gestora, a NASA seria apenas cliente. Os contratos passariam a ser focados na missão final. No lugar de mil licitações para componentes de um foguete, haveria apenas uma, com escopo bem definido, “entregar uma carga de X kg para a EEI”.
O modelo de cost-plus foi abandonado e a empresa que pudesse fazer isso atendendo aos requisitos da NASA da forma mais barata possível, seria a vencedora. A SpaceX passou a ser a principal fornecedora da NASA, utilizando o Falcon 9 desenvolvido com o dinheiro de Musk, investidores de venture capital e o do programa COTS.
Com um produto superior e mais barato e um grande cliente na NASA com contratos bilionários, a SpaceX entrou numa trajetória de crescimento na qual se encontra até hoje. O Falcon 9 passou a ser utilizado para satélites privados e a empresa conseguiu trazer uma enorme eficiência ao setor, como o gráfico abaixo nos mostra:
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Aqui vale ressaltar o que uma boa política pública por parte de funcionários de carreira e também de indicados políticos pode fazer para um setor inteiro e por consequência para um pais.
Modelo de negócios
A SpaceX possui duas linhas de negócio:
1) Lançamento: sua espinha dorsal. Ela envia satélites ao espaço, cargas e pessoas para a EEI. Seus contratos são com empresas privadas e governos. A empresa constrói o foguete, prepara o lançamento, encaixa a carga e a entrega na orbita certa no espaço.
Este serviço é feito com o Falcon 9, um foguete reutilizável de duas etapas. O fato dele ser reutilizável diminui o custo drasticamente. Como Musk disse “Imagine se depois da primeira viagem de um avião entre os EUA e a Europa você jogasse o avião fora? Quanto custaria uma passagem?”.
O Falcon 9 já fez 206 voos e 141 voos de reutilização. Além do Falcon 9, possui o Falcon Heavy, uma combinação de três Falcon 9. A SpaceX esta atualmente desenvolvendo o Starship, a maior foguete já desenvolvido e sua alternativa para levar humanos até a Lua e Marte. O objetivo é que o custo de carga do Starship seja apenas 20% do custo do Falcon 9.
Além disso, a SpaceX possui o Dragon, uma nave para levar carga e pessoas. Desde Maio/2020, quando enviou seus primeiros passageiros para a EEI, a SpaceX já levou 22 pessoas ao espaço, mais do que o programa espacial chinês.
2) Starlink: a medida que a empresa continuou a ganhar eficiência e diminuir o custo de enviar cargos ao espaço, ela passou a buscar novas formas de monetizar suas capacidades. Em 2020 lançou o Starlink, uma constelação de microssatélites de baixa orbita que oferece internet de alta velocidade e baixa latência para o mundo todo.
Seu mercado alvo são regiões rurais e remotas. A empresa já possui mais de 2.200 satélites e esta disponível em mais de 30 países. Espera-se que uma boa parte do valor futuro da SpaceX venha desta linha de negócios devido a sua recorrência e por ser um mercado potencial maior, em torno de US$400 bilhões globalmente.
Quais os riscos?
Eu não seria intelectualmente honesto se não incluísse aqui os riscos que operar um negócio de foguetes traz. Ao concentrar no governo, a SpaceX esta sujeita a mudanças de política. Elon Musk é essencial para o sucesso da empresa, óbvio key-man risk. Existem riscos geopolíticos também.
O Starlink é um negócio novo e é essencial para sustentar a companhia em seu futuro. A empresa pode gastar seu capital em projetos de baixo potencial e quem sabe não existe alguma inovação que os competidores tragam e a deixe para trás.
Tem riscos? Muitos, mas sou muito otimista com o futuro da companhia, assim como os diversos investidores que fizeram seu valuation chegar a US$137 bilhões.
Diferenciais e barreira de entrada
Analisando pela perspectiva de um investidor, existem vários elementos que fazem da SpaceX uma empresa interessante:
Propriedade Intelectual única: A SpaceX possui um conjunto de tecnologias que se em conjunto fazem delas única. Ela é a única empresa com um foguete reutilizável. Vejam esse vídeo e me digam se isso não parece coisa de ficção cientifica? Tecnologia própria que leva a custos 10x menores faz da SpaceX uma espécie de monopólio no transporte de cargas ao espaço.
Escala: por ser uma empresa com backlog grande de lançamentos, ela consegue a cada novo foguete melhorar sua tecnologia e diluir seu custo fixo.
Verticalização: a empresa fabrica boa parte do foguete ela mesma. Isso traz benefícios de coordenação e ainda mais ganhos de escala.
Talento: poucas empresas tem uma missão mais sexy e grandiosas que a SpaceX. Isso atrai os melhores talentos do mundo inteiro que querem trabalhar na fronteira do que é possível na tecnologia espacial. É gente boa atraindo gente boa numa escala global. A empresa possui uma cultura única também, que os 10 principios abaixo explicam:
Elon Musk: esse é o tipo de empreendedor que se vê uma vez a cada 100 anos. Ele consegue recrutar talento, captar recursos e lançar produtos que os consumidores amam numa escala acima de qualquer outro. Além disso, é um excelente contador de histórias e consegue convencer do governo americano ao PhD em engenharia aeronáutica que a empresa certa para levar os humanos a Marte é a dele.
Poucas empresas que não são B2C tem uma marca tão valiosa quanto a SpaceX. A empresa captou bilhões, seja do próprio Musk, investidores ou governo. Isso se deve muito a ele.
É difícil imaginar um futuro para a indústria espacial sem a SpaceX em seu centro. Em 20 anos, ela conseguiu revolucionar a economia espacial e parece que ainda tem muito a mostrar.
Mais do que isso, é uma empresa que representa o que há de melhor na humanidade: nossa vontade de escolher desafios difíceis e de superá-los. Ficarei atento para os próximos movimentos da SpaceX, pois sei que estes apontarão para o futuro.
*Texto publicado originalmente na newsletter Bits, Stock e Blocks.
Sobre o autor
Eduardo Vasconcellos é engenheiro mecânico formado na Universidade de São Paulo (USP), com MBA na Universidade de Stanford. Atualmente ocupa a vice-presidência da firma de investimentos GIC, com sede em Singapura. Além disso, escreve a newsletter Bits, Stock e Blocks.