Em março de 2019, o médico indiano Cyriac Abby Philips, especialista em hepatologia e medicina de transplante de fígado, publicou um estudo relacionando a morte de um de seus pacientes ao consumo de produtos da Herbalife, empresa de marketing multinível da área nutricional.
A empresa, segundo relato do médico publicado no Twitter no final de dezembro de 2020, começou então a travar uma batalha cientifica e jurídica para tentar provar que a pesquisa não tinha fundamento. Até pesquisadores brasileiros de uma empresa nacional entraram no embate em nome da Herbalife.
Depois de um ano de de disputa, a gigante do marketing multinível conseguiu convencer a Elsevier — empresa global de artigos acadêmicos que publicou o estudo — a tirar o material de Philips do ar.
“O dinheiro ganhou e a ciência falhou. Fiquei arrasado”, disse o pesquisador em seu perfil na rede social.
Produtos são seguros, diz Herbalife
Em nota, a Herbalife, que recentemente teve que pagar US$ 122 milhões de multa em caso de corrupção, informou que defende a qualidade e a segurança de seus produtos nutricionais. Disse ainda que seus produtos e procedimentos de fabricação estão em conformidade com as regulamentações governamentais da Índia e de outros países onde atua e “nenhuma hepatotoxina (substância tóxica que pode prejudicar o fígado) jamais foi encontrada” neles.
Informou ainda que tem um “robusto programa de testes de rotina na Índia” e que pediu a um “laboratório independente, certificado pelo governo, para testar os produtos mencionados (pelo médico indiano) e os resultados confirmam que os produtos são completamente seguros e cumprem todas as regulamentações de segurança governamentais indianas relevantes”.
A reportagem questionou a Elsevier, mas ainda não obteve resposta. O responsável pela assessoria de comunicação, conforme e-mail encaminhado à redação, está de férias.
Histórico da disputa
De acordo com o pesquisador indiano, no ano passado, logo após a publicação do estudo, a Herbalife entrou em contato com ele contestando o estudo. Quem assinou o comunicado, disse, foi um professor da Universidade de Guelph, em Ontário, no Canadá, que trabalha para a empresa. O nome do docente não foi citado.
“A nossa refutação (ao documento do professor) foi forte e com evidências científicas que apoiam nossos achados. No entanto, não tive notícias do professor ou daquela universidade novamente (depois do contato). As coisas se acalmaram”, escreveu em sua rede social.
Philips disse que algum tempo depois uma nova carta da Herbalife apontando supostas fraquezas no estudo foi enviada, mas o destinatário teria sido a Elsevier. O documento, segundo ele, foi assinado pelos pesquisadores brasileiros Flávio A.D Zambrone (médico), Cristina L. Correa (a farmacêutica industrial) e Ligia M.S. do Amaral (a farmacêutica industrial), disse.
Os três pesquisadores fazem parte da Planitox, uma empresa de consultoria em toxicologia fundada por Zambrone em abril de 2005 em Campinas (SP). Philips afirmou que a Planitox teria sido financiada pela Herbalife. Questionada, a empresa de marketing multinível negou a relação.
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“O Dr. Zambrone escreveu esta carta tentando mostrar fraquezas em nosso manuscrito. O editor-chefe da revista nos pediu para responder a essa carta. Nossa resposta foi repleta de evidências e forte refutação. A carta de Zambrone e nossa resposta foram publicadas no jornal”.
A reportagem entrou em contato com Zambrone, que foi professor da Unicamp por 24 anos, mas ele não respondeu. Pesquisa na internet mostra que antes mesmo do aritgo do médico indiano Zambrone publicava artigos tentando desmentir a relação entre consumo de produtos da Herbalife e danos ao fígado.
Em dezembro de 2016, por exemplo, o pesquisador publicou na Revista Brasileira de Ciências Farmacêuticas o artigo “Uma análise crítica dos casos de hepatoxicidade descritos na literatura relacionados aos produtos Herbalife”.
No estudo, ele afirmou que, ao analisar sete trabalhos que reportaram 53 casos de hepatotoxicidade (dano no fígado causado por substência químicas) após consumo de produtos da Herbalife, não verificou nenhum tipo de causalidade.
“Observou-se que todos trazem, de alguma forma, quantidade insuficiente de informações em relação ao histórico dos pacientes, ao uso concomitante de medicamentos e/ou outros compostos (incluindo álcool), às observações após a interrupção do uso (dechallenge), aos resultados referentes a marcadores e sorologia virais e autoanticorpos e às observações quanto à reexposição aos produtos”, escreveu.
Advogados entram na disputa
Segundo Philips, depois do contato feito pelos pesquisadores brasileiros a Herbalife recorreu à Justiça. Ele afirmou ter recebido uma notificação legal de advogados de Deli, capital da Índia. “Eles me aconselharam a fornecer provas sobre meu estudo ou enfrentar uma ação judicial pesada por difamação. Respondemos a carta. Estávamos prontos para lutar no tribunal”, escreveu o médico indiano.
De acordo com o pesquisador, após a notificação, os advogados não fizeram mais contato. No entanto, disse, os juristas passaram a “assediar” a Elsevier e seu conselho editorial. Diversas avisos legais foram enviados à empresa de publicação, disse. “Essa foi a gota d’água. O editor-chefe do jornal foi ameaçado e a editora entrou em pânico”, disse Philips.
Por fim, segundo o médico indiano, a pesquisa e a carta de retratação foram removidas da internet. Os documentos ainda podem ser encontrados neste link.
O que diz o estudo
No artigo ‘Emagrecimento até a morte: Insuficiência hepática fatal aguda associada à Herbalife – metais pesados, compostos tóxicos, contaminantes bacterianos e agentes psicotrópicos em produtos vendidos na Índia’, Philips relatou que uma jovem atendida por ele consumiu produtos da Herbalife por cerca de dois meses.
Após esse período, alegou ele na pesquisa, ela teria desenvolvido perda progressiva de apetite por uma semana, seguida de icterícia (condição em que uma pessoa fica com a pele amarelada) e prurido transitório (um tipo de coceira).
“Doze dias depois, a icterícia piorou e ela foi trazida ao nosso pronto-socorro com encefalopatia hepática grau 3. Uma biópsia hepática mostrou extensa necrose periportal e perivenular com infiltração inflamatória mista moderada a grave, hepatite de interface, colangite, balonismo grave, esteatose e colestase intracanalicular”, disse o médico.
Após ser levado ao hospital, disse, a paciente morreu.