Worldcoin: “Registro da íris em blockchain deve ter meio funcional para exclusão”, diz especialista

Especialista na lei de dados, advogado Marcelo Crespo aponta que uso da blockchain é mais um complicador no projeto da Worldcoin
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(Foto: Divulgação/Worldcoin)

A Worldcoin foi proibida nesta terça-feira (11) de pagar pelo registro em blockchain da íris de brasileiros, coisa que a empresa fundada por Sam Altman, criador da OpenAi, fazia usando criptomoedas. Diante desse cenário, a iniciativa resolver interromper no momento o projeto, mas os postos de coleta seguem abertos, só que apenas para divulgar informações sobre o projeto.

Um dos argumentos da proibição imposta pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) é que o pagamento, que estava sendo no equivalente a cerca de US$ 600, poderia fazer com que pessoas em situação de necessidade aceitassem conceder os dados sem necessariamente concordar com o projeto – uma venda de dados personalíssimos motivada pelo desespero econômico.

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“O argumento do Ministério Público tem um fundamento do ponto de vista ético e jurídico. O pagamento para a coleta de um dado sensível pode gerar sim uma situação de coação econômica, onde as pessoas em situação de vulnerabilidade aceitam fornecer sua biometria, não porque realmente desejam e compreende, mas porque precisam do dinheiro”, afirma Marcelo Crespo, advogado especialista em legislação sobre dados e coordenador do curso de Direito da ESPM.

Advogado e professor Marcelo Crespo (Foto: Arquivo Pessoal)

O advogado lembra que a coleta massiva de dados pessoais por redes sociais já é um problema, mas que no caso da Worldcoin existe um complicador: a biometria da íris é única e imutável. “Isso torna a sua coleta um pouco mais problemática.”

Outro pontos analisado por Crespo é o fato de que esses dados da íris são registrados em blockchain, um sistema feito tornar eterno todos os registros. A Lei Geral de Proteção de Dados prevê a possibilidade de que a pessoa exija a exclusão de seus dados, o que gera um conflito com a tecnologia.

“O Estado deve proibir os armazenamento de dados biométricos em blockchain sem que haja um mecanismo funcional de exclusão”, afirma Crespo.

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Sobre as alegações do deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) de que empresas poderiam usar dados da íris para negar acesso aos planos de saúde, Crespo diz que não se trata de ficção científica. “A preocupação tem um fundamento teórico, mas a gente ainda não tem indícios concretos de que a tecnologia da Worldcoin permitiria essa condição de identificações da saúde a partir da biometria da íris.”

Por meio de nota, a Worldcoin se pronunciou sobre a decisão da ANPD: “A World respeita a decisão da ANPD. Como a ANPD está ciente, será necessário tempo para cumprir com a sua ordem. Para permitir que a World conclua as mudanças em coordenação com a ANPD e garanta conformidade durante esse processo, estamos voluntariamente e temporariamente pausando o serviço de verificações. Os espaços físicos da World permanecerão abertos para fornecer educação e informações ao público e pedimos desculpas por qualquer inconveniente aos que desejavam se juntar à World agora.”

Por fim, o advogado ressalta que o Estado deve ter um acesso controlado ao banco de dados da Worldcoin, pois um acesso irrestrito do ente estatal também pode gerar problemas como vigilância em massa.

Leia abaixo a entrevista completa:

O argumento do MP para a interrupção do serviço da Worldcoin é que o pagamento para coletar a íris pode ser um fator que, em casos de pessoas hipossuficientes, entra no meio digamos assim do poder de escolha da pessoa. Você concorda com essa tese do MP?

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Marcelo Crespo: O argumento do Ministério Público tem um fundamento do ponto de vista ético e jurídico. Especialmente sob a ótica do consentimento livre, informado e inequívoco, que são exigências da Lei Geral de Proteção dos Dados, a LGPD. Assim, o pagamento para a coleta de um dado sensível pode gerar sim uma situação de coação econômica, onde as pessoas em situação de vulnerabilidade aceitam fornecer sua biometria, não porque realmente desejam e compreende, mas porque precisam do dinheiro. E esse tipo de relação pode ser problemático, porque pode ferir o princípio da autodeterminação informativa, que exige que as pessoas tenham liberdade real para decidir sobre o uso de seus dados pessoais. 

De acordo com as boas práticas das legislações de dados ao redor do mundo, acha que esse projeto é defensável do ponto de vista ético? De certa forma, as redes sociais já são empresas privadas coletando massivamente dados da população em troca de um serviço. A diferença aqui seria a sensibilidade do dado?

Marcelo Crespo: A coleta massiva de dados pessoais por parte de rede sociais e outras empresas já é um problema regulatório e ético conhecido há algum tempo. No caso da Worldcoin, a diferença central está na sensibilidade e irreversibilidade dos dados coletados. Enquanto os dados tradicionais como nome, e-mail e localização podem ser alterados ou excluídos, a biometria da íris é única e imutável. Isso torna a sua coleta um pouco mais problemática.

Assim, a introdução do pagamento como incentivo, acaba agravando essa situação, pois pode gerar um mercado baseado na venda de identidades biométricas. Então depende muito de como a Worldcoin vai proteger, segregar e impedir que esses dados coletados sejam alvos de violações de dados pessoais.  

Não é um complicador o fato do dado ser incluído em uma blockchain, um sistema que foi feito para gerar um eterno registro? Pelo que entendo um dos pilares das políticas de dados é a possibilidade da pessoa solicitar a exclusão definitiva do seu dado. 

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Marcelo Crespo: A questão do blockchain é um problema nesse projeto. O blockchain é feito para que os registros não sejam apagados. Então, um dos princípios fundamentais da legislação de proteção de dados é o que a gente chama de direito ao esquecimento. Uma vez que isso acaba sendo registrado no blockchain, é muito difícil de você reverter essa situação. Porque todo o sistema é feito para você auditar fatos e acontecimentos. 

Na prática, uma pessoa que cedeu sua íris para a Worldcoin pode acabar não tendo meios reais de remover esse dado do blockchain. O que contraria normas básicas de privacidade e proteção de dados. É claro que eventualmente você pode fazer uma nova operação, dizendo que agora o titular do dado pediu o apagamento. Mas a primeira informação, a da coleta, como regra, fica no sistema. 

O deputado Guilherme Boulos afirma que os dados poderiam ser usados para futuramente se negar um plano de saúde em uma pessoa que a íris aponta alguma comorbidade. Acredita que isso é um cenário plausível ou parece mais uma ficção científica?

Marcelo Crespo: A preocupação tem um fundamento teórico, mas a gente ainda não tem indícios concretos de que a tecnologia da Worldcoin permitiria essa condição de identificações da saúde a partir da biometria da íris. A possibilidade do uso indevido de dados biométricos para discriminação em seguros, crédito e outros serviços não é uma ficção científica. Já existem precedentes de empresas que usam análises de dados para determinar o risco de saúde, comportamento financeiro e até propensão a fraudes. 

O problema principal pode ser entendido como a falta de transparência. Os usuários realmente entendem quais informações podem ser inferidas a partir da coleta de sua íris? Existem garantias de que esses dados não serão usados para outros fins no futuro? A história da regulamentação da tecnologia nos mostra que muitas vezes os riscos surgem depois que o sistema já está em pleno vigor. 

Como ficaria, diante da lei brasileira, o caso de uma pessoa que recebe o dinheiro pela íris e depois quer que o dado seja excluído. Ela teria que devolver o dinheiro?

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Marcelo Crespo: Se a Worldcoin estiver operando no Brasil e for enquadrada como uma controladora de dados pessoais – e como regra poderia ser – então ela estaria sujeita a LGPD, o que garante sim que os titulares tenham direito a eliminação dos seus dados. Mas se a empresa considerar o pagamento como uma troca definitiva, ela poderia alegar que os dados foram cedidos sob um contrato de adesão, o que implicaria a devolução. E aí dependeremos de uma interpretação judicial se o contrato poderia ser um contrato de adesão e se essa é uma cláusula leonina. 

Mas a LGPD não condiciona o direito de exclusão ao reembolso de qualquer quantia. Então o usuário poderia sim exigir a eliminação sem a obrigação de devolver o valor recebido. Porque esse é um direito da LGPD. 

Como deve ser a relação entre o Estado brasileiro e uma empresa que coleta centenas de milhares de dados ultra pessoais de brasileiros? O Estado deveria ter acesso a esse banco de dados sempre que quisesse?

Marcelo Crespo: O Estado brasileiro deve manter uma postura vigilante. Exigir que a empresa tenha representação legal no país, realizar auditoria, proibir o armazenamento de dados biométricos em blockchain sem um mecanismo funcional de exclusão e estabelecer meios claros de acesso do governo ao banco de dados. 

Mas o Estado ter acesso irrestrito, isso também poderia abrir precedentes perigosos para vigilância em massa e uso indevido das informações. Para isso tem uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que sob a perspectiva da privacidade faria essa fiscalização.