A República Centro-Africana é um país tão isolado que, entre o início de rumores que ele havia se tornado a segunda nação do mundo – após El Salvador – a adotar o Bitcoin como moeda legal e a confirmação da informação, no final de março, vários dias se passaram.
A decisão foi surpreendente, por vir de uma das regiões mais pobres do mundo, onde apenas 4% da população conta com acesso à Internet, segundo reportagem da Folha de S. Paulo. Mesmo uma barreira desse tamanho, no entanto, não foi suficiente para desanimar o homem por trás da decisão: Faustin-Archange Touadéra, um matemático transformado em presidente centro-africano.
A matemática, aliás, é usada por Touadéra frequentemente como uma das bases de suas decisões. Em mensagem fixada em seu perfil no Twitter, o político fala: “Matemática é a linguagem do Universo. Bitcoin é o dinheiro universal”.
Em suas publicações na rede social, Touadéra frequentemente junta a matemática com uma reverência pela figura de Satoshi Nakamoto, criador do bitcoin, e pela própria criptomoeda.
“Entender a matemática que sustenta o consenso de Nakamoto é fundamental para reconhecer o poder do Bitcoin como dinheiro universal”, diz ele. Na mesma publicação, Touadéra deixa um link para amantes da matemática que leva até um artigo sobre a solução do problema do gasto duplo feito por Cyril Grunspan e Ricardo Perez-Marco.
O político ainda usa frequentemente o Twitter para exaltar as redes blockchain e o fato de o mundo ter voltado sua atenção ao país: “Invisíveis até agora, nos tornaremos visíveis e seremos reconhecidos e apreciados. Para o futuro das gerações futuras!”, exclama na rede social.
Professor presidente
Faustin-Archange Touadéra, 65 anos de idade, é professor de matemática e dá aula desde 1987. Mesmo após ser eleito presidente, continuou com parte das atividades acadêmicas e docentes indo uma vez por semana dar aulas na Universidade de Bangui.
“As atividades são complementares [presidência e docência]. Eu tenho um feedback dos alunos das ações que estamos tomando e eu posso debater com meus estudantes”, diz Touadéra em entrevista para a TV britânica BBC.
Veja abaixo a reportagem (em francês):
Polêmica
A República Centro-Africana tem o segundo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do mundo, segundo a ONU, atrás apenas do Níger. O PIB per capita do país é o sexto pior do planeta, em um patamar de US$ 492,80.
Segundo dados do Banco Mundial, o país tem 4,8 milhões de habitantes, um PIB de US$ 2,38 bilhões e uma expectativa de vida de 53,7 anos.
Diante desse cenário, não supreende que a adoção do bicoin cause surpresa. Luiza Peruffo, professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e especialista em políticas monetárias, levanta uma questão em entrevista ao Portal do Bitcoin: “Se a população em geral dificilmente poderá usar o Bitcoin como moeda no dia a dia, então cabe perguntar quem se beneficiará com esta decisão”.
A pesquisadora lembra a Repúblico Centro-Africana é um país rico em reservas de ouro e diamantes, mas também dominado pela instabilidade política e pela violência.
“Cabe notar que o caráter descentralizado e não transparente dos criptoativos os torna extremamente atrativos para atividades ilícitas. Um estudo recente do Parlamento Europeu aponta que metade das transações anuais com Bitcoins pode ser associada a atividades ilegais, tais como compra e venda de bens e serviços online em mercados da darknet, lavagem de dinheiro e roubos de ransomware”, diz ela.
“Um outro aspecto é a alta volatilidade do Bitcoin, que dificulta pequenas transações do dia a dia. Assim como em um país com altos índices de inflação, a volatilidade que caracteriza o Bitcoin tende a penalizar os mais pobres (neste caso, a grande maioria da população)”, afirma Peruffo.
Disputa armada
Para a maioria do país, o Bitcoin chega como apenas uma leve distração. O assunto mais urgente é a unidade territorial e a disputa armada pelo poder que ainda ocorre de forma muito intensa, conforme fica claro na longa entrevista que Touadéra deu para o portal The Africa Report em setembro do ano passado.
Na conversa, não se fala de economia, covid-19 ou necessidades sociais. O único assunto é a disputa pelo controle do país. Existe por lá a presença militar de forças de Ruanda e da Rússia, especificamente dos mercenários da milicia conhecida como Wagner Group, financiada pelo governo de Vladimir Putin. Ao mesmo tempo, o país sofre um embargo de armas imposto pela ONU.
As forças estrangeiras estão, segundo presidente, com a missão de fazer com que ele ,como líder eleito, consiga se manter no poder.
Terror praticado por milícia russa
Mas o auxílio russo parece estar muito além de uma força usada para manter o presidente no poder e combater grupos armados. O grupo Observatório dos Direitos Humanos (HRW – Humans Righ Wacth, em inglês) afirma que os mercenários russos mataram pelos menos 12 pessoas desarmadas que bloqueavam uma estrada no início de maio, conforme aponta reportagem da BBC.
A ONG também relata que os mercenários russos têm prendido, torturado e mutilado pessoas. A reportagem da BBC mostra uma foto da mão de um homem sem um dos dedos. Ele teria sido tomado como rebelde e punido por isso. Esse mesmo homem, que falou com a HRW em setembro de 2019, teria morrido em circunstância não esclarecidas tempos depois.
A matéria da BBC também aponta que três documentaristas russos que estavam fazendo um filme sobre a atuação do grupo Wagner no país, foram mortos no dia 30 de julho de 2018 e os culpados pelos homicídios nunca foram identificados.
FMI alerta para riscos
Quem se manifestou sobre a decisão de adoção do Bitcoin como moeda legal no país foi o Fundo Monetário Internacional (FMI).
O portal Bloomberg questionou o FMI sobre a medida e teve como resposta que “a adoção do Bitcoin como moeda legal na República Centro-Africana levanta grandes questões legais, de transparência e desafios de política econômica”.
Já a agência de notícias francesa France Presse (AFP) fez uma reportagem, publicada pelo portal Yahoo, conversando com cidadãos centro-africanos para saber o que pensam sobre a criptomoeda.
Sylvian, um homem na faixa dos 30 anos, devolveu a pergunta ao que questionado: “O que é Bitcoin?”.
Joelle, uma vendedora ambulante de legume, disse: “Eu não sei o que são criptomoedas. Eu não tenho nem internet”.
Um empresário que falou sob anonimato, disse: “Não tenho interesse em ter Bitcoin. Nós não temos infraestrutura e nem conhecimento para entrar nessa aventura e não temos uma unidade de combate a crimes cibernéticos para garantir a segurança. Temos outras prioridades como segurança, energia, acesso à água e internet e construção de rodovias”.