Hoje pela manhã, vi uma maquininha de remarcar preços em ação. Quando entro nas redes sociais, vejo: 1) pessoas comentando os altíssimos preços do arroz; 2) imagens de racionamento de bens básicos em supermercados de Campinas; 3) cenas de saque de carretas de carne, com a polícia arruinando a mercadoria com gás pimenta para evitar que ela fosse roubada.
Tudo porque no final de semana o seu Jair pediu que os empresários fossem patriotas e não aumentassem os preços.
Isso lembrou a aurora da minha vida, minha infância querida que eu jurava que os tempos não trariam mais. Eu lembro de tudo.
Eu tinha oito anos quando o então presidente Sarney abriu cadeia nacional de televisão logo depois do almoço para anunciar que o cruzeiro não existia mais e que a partir daquele momento o que valia era o Cruzado. Cairiam três zeros de todos os valores (ou seja, dividiriam por mil) e os preços seriam tabelados.
Era 28 de fevereiro de 1986, e minha ingenuidade infantil nunca havia imaginado que o dinheiro poderia mudar. Metade da população do Brasil nasceu depois disso e talvez nutra a mesma ilusão, então vou contar essa história pra vocês.
Que os preços subiam todo dia não era novidade para ninguém, muito menos para um garoto de oito anos cujo único luxo de consumo eram revistas em quadrinhos. Esta vinha sendo a trajetória dos preços do gibi do Super-Homem até então (em amarelo, o primeiro da minha coleção): 967% de aumento em dois anos.
Era enlouquecedor, e isso vinha desde os estertores da ditadura, quando o segundo choque do petróleo rasgou a fantasia do “milagre econômico” e arremessou a economia brasileira numa crise insanável. Na faculdade, li um excelente texto do economista Pedro Malan, trazido por uma professora para que conhecêssemos quem o então ministro era antes de estar no governo, mas não faço ideia de como encontrá-lo.
O dia do anúncio, 28 de fevereiro, ainda não era dia de aula. Mas, naquela época, eu estudava numa escola defronte a um supermercado, e passei a ser incumbido de fazer pequenas compras para a casa — leite, pão, margarina, carne moída etc. Havia uma tabela de preços congelados, publicada na edição dominical dos jornais e atualizada com alguma frequência.
Não tinha como a ideia não ser popular. Preços previsíveis têm um excelente apelo para o consumidor, e o Sarney ganhou muita popularidade. Pessoas chamavam a polícia e a Sunab para fechar supermercados careiros…
…portando no peito bottons assim:
Bom, aí os estabelecimentos começaram a racionar mercadorias, limitando a quantidade que cada pessoa podia levar para casa— mais ou menos como se viu em Campinas hoje.
Meu avô era dono de uma quitanda, e nos sábados ele botava todos os netos numa só Kombi para irmos comprar produtos racionados para abastecer as prateleiras. Cada um numa fila, comprando o máximo permitido, depois a gente se encontrava na Kombi.
Entrou para o folclore do período a ocultação de boi gordo por parte dos pecuaristas, e faltou carne no Brasil. Aí o governo liberou a importação de carne contaminada pela radiação de Chernobyl, coisa que mencionei em outro texto. Nunca vou esquecer aquele sabor horrível. Nunca.
Depois de uns meses, os preços voltaram a subir. Veja nos preços do gibis do Super-Homem, que faziam parte da minha cesta básica. Em amarelo, os gibis que faziam parte da saga Crise nas Infinitas Terras — que começou justamente em abril de 1987, mês em que o preço dos gibis aumentou 63% em relação ao mês anterior.
Nos supermercados, a maquininha de remarcar já funcionava a todo vapor nessa época. Eu continuava fazendo as compras pela família, mas agora era orientado a comprar antes de entrar em aula para escapar do aumento dos preços do meio da tarde. Eu era craque em achar latas de óleo ainda não remarcadas. As prateleiras eram uma bagunça.
Os preços aumentavam tanto que não se tinha muita referência do que era o quê. Celso Furtado conta detalhes desse período em seus Diários Intermitentes, da posição privilegiada de quem era o maior economista do Brasil mas estava ocupando o cargo de ministro da cultura para não incomodar os milicos mas sempre era chamado pelo presidente para reservadamente dar suas opiniões sobre economia.
Super-Homem 49 tinha custado Cz$ 130. A edição seguinte custou Cz$ 160. Mas as gargalhadas do Coringa taparam o 1. A caixa do supermercado me cobrou Cz$ 60. A partir da edição seguinte (Cz$ 190), o gibi começou a vir com uma caixa branca por trás do preço.
Em janeiro de 1989, o preço aumentou 43% e o gibi saiu por R$ 500. Nada menos que SETE MIL E QUARENTA E TRÊS POR CENTO de aumento em quase três anos.
A inflação estava enlouquecida, e o governo fez uma nova tentativa de mudar a moeda. Surgiram os cruzados novos, que duraram cerca de um ano. No meio do caminho, Sarney chegou a ser agredido na rua.
Divide todos os preços por 1000, carimba as notas, ano eleitoral altamente disputado… adivinha só o que aconteceu: em 14 meses, os preços dos gibis passaram de NCz$ 0,50 para NCz$ 53. DEZ MIL E QUINHENTOS POR CENTO de aumento no preço nominal. Em um ano.
Aí entrou o Collor, aquele zé-graça que você deve ter visto alguma vez no Twitter tentando ganhar seguidores. Não acredite nele. Quando ele chegou, deu uma congeladinha nos preços, confiscou a poupança e este foi o seu governo, em termos de preços do gibi do Super-Homem: VINTE E UM MIL, DUZENTOS E TRINTA E TRÊS por cento de aumento no preço nominal.
O último ponto da fila é o mês do impeachment.
Esta foi uma época especial para mim. Foi quando o Ian Gillan, o Deep Purple, o Black Sabbath e o Iron Maiden foram a Porto Alegre pela primeira vez; quando entrei no segundo grau; e foi quando comecei a trabalhar e ganhar meu próprio dinheiro. Pois é, comecei cedo.
Nessa época, eu já havia incorporado às minhas estratégias de enfrentamento da inflação algumas metodologias. A principal delas era esperar até a véspera do recolhimento da edição do gibi para comprá-lo. Assim, comprava com preço velho. No tocante aos shows. aprendi a fazer regra de três. O ingresso do show do Deep Purple, em agosto de 1991, custava Cr$ 6 mil e a passagem de ônibus custava Cr$ 100. Foi fácil prever que o ingresso do show do Iron Maiden, um ano depois, custaria Cr$ 40 mil.
A inflação me fez aprender matemática, portanto. Muito obrigado, mas queria não ter precisado.
E também foi nessa época que ganhei meu primeiro (e único) milhão. Mas não se impressione, não: isso era mais ou menos um salário mínimo, no final de 1992, quando um gibi custava uns Cr$ 10 mil. Lembro disso porque muitos anos depois encontrei o boletim de ocorrência de quando fui vítima de um golpe.
Os salários eram corrigidos com frequência, mas a inflação era sempre mais rápida. Para que o dinheiro não perdesse o valor no banco, as contas tinham alguma correção diária. Dinheiro parado um mês na conta era prejuízo, mas o salário nunca durava tudo isso. Com a correção, sobrava um pouco menos de mês depois do fim do salário.
Certa vez, no dia de cair o salário, cheguei ao banco e meu dinheiro não estava lá. Registrei um boletim de ocorrência. Durante quatro dias, olhei e reolhei meu extrato. Nada. No quinto dia, caiu. Cada centavo do salário. O problema: não veio um centavo sequer dos juros. Tempos depois, descobriram uma quadrilha dentro do banco. Eles escolhiam alguns incautos ao acaso, no dia do pagamento, e desviavam seus salários para uma conta fantasma. Por alguns dias, rendia juros. Depois, devolviam o salário e ficavam com os juros.
Ah, sim, os preços dos gibis. Em outubro de 1992, já no governo Itamar, a Abril parou de dar preços nominais na capa dos gibis. Passou a usar um sistema de códigos atualizado semanalmente. Super-Homem custava A23 nas revistas de 84 páginas até o número 121, de julho de 1994, quando veio o Plano Real. Era esse o preço no número 108, quando Clark Kent revelou sua identidade à sua eterna namorada, Lois Lane. Quando o Superman voltou do mundo dos mortos, no número 126, o preço já estava em reais.
Um quarto de século depois do Plano Real, como está a situação? Difícil comparar diretamente, porque os quadrinhos mudaram muito.
Aquele gibi do Super-Homem que eu comparo nos gráficos tinha sempre o mesmo tamanho (13 x 21 cm) e número de páginas (84). Era impresso em papel semelhante ao papel jornal, com qualidade variada. Quando era impresso na gráfica Cochrane, no Chile — aconteceu muito em 1989/1992 — , a impressão era de pior qualidade.
Aquela série durou até setembro de 1996, e a última edição (147) custava R$ 2,20. A segunda série, que foi até 2000, acabou custando R$ 2,50. Ao final o formato era um pouco maior e a revista tinha 100 páginas. Isso dava R$ 0,025 por página, que corrigidos pelo IGM-M — os múltiplos índices de inflação são uma herança daquele tempo — dariam R$ 0,113 por página hoje.
Hoje, o último gibi do Superman que se encontra na banca custa R$ 12,90. Tem 72 páginas, três histórias, formato maior (17 x 26), capa cartonada e papel encerado. Isso dá R$ 0,179 por página, mas são páginas bastante diferentes. Na média, dá pra dizer que um formatinho com o mesmo número de páginas custaria R$ 8,14.
Se formos ser ainda mais preciosistas, um gibi no formatinho de 2000 custaria R$ 0,0004 por centímetro quadrado de página em papel jornal e cores opacas, enquanto um gibi bastante luxuoso de hoje custa R$ 0,0004 por centímetro quadrado de pagina em papel encerado e cores brilhantes. Ou seja: o gibi hoje é mais barato, ao menos em centímetros quadrados atualizados pela inflação.
É àquele Brasil da inflação galopante que nunca imaginei que poderíamos voltar. Mas é o que se desenha no caminho, a julgar pelas cenas de hoje.
Sobre o autor
Marcelo Soares é jornalista especializado em dados e editor do Numeralha e Lançando os Dados.