NFTs no setor artístico: questões fiscais no Brasil

Especialistas explicam os efeitos tributários de operações com NFTs
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Foto: Shutterstock

No cenário pandêmico que vivemos desde 2020, a tokenização de obras artísticas (músicas, textos, imagens, pinturas, etc.), reais ou virtuais, com a emissão de NFT’s, tornou-se a válvula de escape para este segmento econômico.

Dentre outros, temos, como exemplo de sucesso, o caso “Beeple”, cujo NFT foi vendido por US$ 69 milhões na plataforma Christie’s. Pragmaticamente, um NFT é um certificado de autenticidade, real ou virtual, de autenticidade ou procedência, conferindo-lhe exclusividade. Nessa perspectiva, um NFT nada mais é do que um registro em um banco de dados descentralizado.

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Esta autenticação, todavia, refere-se ao próprio token e não à cópia de uma obra a ele atrelada. Ou seja, o NFT não corresponde à própria arte digital, à música, ao vídeo, etc, limitando-se a atestar que “A deve a B um arquivo digital de X”.

Por meio de um NFT, o adquirente não irá obter, obrigatoriamente, a propriedade ou a posse do arquivo digital ou da obra física porventura existente. Não podemos confundir, portanto, o NFT com o direito ou o bem a que ele se refere.

A nosso ver, a análise dos efeitos jurídico-tributários referentes às operações com NFT’s não pode ser feita de forma dissociada dos direitos subjacentes que porventura são transferidos ao adquirente do token, conforme será demonstrado.

Conceito de NFT (non-fungible tokens)

Esses non-fungible tokens ou tokens não fungíveis são revestidos da qualidade de infungibilidade. A definição legal de fungibilidade é encontrada na interpretação “invertida” (a contrario sensu) do 85 do Código Civil, nos permitindo afirmar que infungível é o bem qualificado como insubstituível, por não existir outro da mesma espécie, qualidade e quantidade.

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O NFT, portanto, é um registro em um banco de dados descentralizado que estabelece: (i) de quem é o link referenciado no token; (ii) para quem será direcionado; (iii) qual o seu conteúdo; (iv) e quais seriam as eventuais regras de distribuição do preço (parte do proprietário, parte para o marketplace, eventual direito de sequência, etc).

Apesar disso, não parece adequado afirmar, como regra absoluta, que um NFT seja um mero conjunto de bits e bytes por meio do qual o usuário adquire apenas o token, mas não o conteúdo por ele referenciado. Tudo vai depender do direito subjacente ao NFT.

Explicamos.

Contratos inteligentes

Tomemos como exemplo a aquisição de um bem imóvel. Neste cenário, também temos uma escritura, ou seja, um “mero pedaço de papel” com informações e assinaturas. Obviamente, ninguém firma um contrato de compra e venda de um bem imóvel porque deseja adquirir uma escritura. O que se adquire é aquilo que a escritura representa.

A linguagem, portanto, molda a realidade. A escritura viabiliza a aquisição de um conjunto de direitos referentes ao bem imóvel. O mesmo racional deve ser outorgado aos NFT’s. Tratar os NFT’s como meros conjuntos de bits e bytes, a nosso ver, equivaleria a tratar uma escritura de um bem imóvel apenas como tinta em um pedaço de papel e caneta.

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Simbolicamente, a escritura faz referência ao bem imóvel e todos os direitos a ele relativos. No caso dos NFT’s, o smart contract (contrato inteligente) é um conjunto de dados e informações. Portanto, as regras constantes deste conjunto de dados é que deverão determinar o real objeto e os direitos efetivamente transacionados. Se o smart contract prevê que não há direito algum sobre o conteúdo, então realmente não há.

Por outro lado, o smart contract poderá estabelecer que o adquirente possui direitos patrimoniais sobre o próprio conteúdo. Tudo dependerá, consequentemente, do teor dos direitos transmitidos, à luz do princípio da autonomia da vontade, o que impactará a aplicação ou não, por exemplo, da lei de direitos autorais e, consequentemente, poderá afetar a tributação da operação.

Em síntese, é o código que determina o que o token realmente é, daí porque, no contexto dos criptoativos, entendemos que os NFT’s são tokens que possuem uma “espécie de lastro”, qual seja, um mero acesso a um bem ou, ainda, o direito subjacente a um outro bem, o que, no caso do setor artístico, pode ser uma cópia de uma obra de arte, o direito a royalties de uma música, etc.

NFTs são criptoativos aos olhos do Fisco?

Surge, então, a dúvida mais relevante: os NFTs são criptoativos aos olhos do Fisco? Consequentemente, os NFTs são equiparados aos ativos financeiros?

De acordo com o artigo 5º da instrução normativa 1.888/2019, um criptoativo equivale a uma “representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal”.

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Pela literalidade dessa definição, podemos concluir que NFTs não são criptoativos, já que não possuem “sua própria unidade de conta”. Ao invés disso, são referenciados em bitcoin (BTC), em ethereum (ETH) ou até em dólares.

A despeito desse desencaixe conceitual, é bem provável que a Receita Federal do Brasil considere os NFTs como sendo criptoativos, pelo mero fato de serem transacionados por meio de tecnologias de registro distribuído.

Na prática, a primeira consequência em considerar um NFT como sendo ou não criptoativo é de ordem acessória: afeta apenas as declarações envolvendo este ativo, mas não propriamente sua tributação. Se forem considerados criptoativos, deverá ser observada a Instrução Normativa 1.888/2019 e, anualmente, na declaração de ajuste anual, os NFTs serão declarados sob o código 89.

Se não forem considerados criptoativos, devido à ausência de unidade de medida própria, não há obrigatoriedade de atendimento às obrigações de declaração previstas na IN 1.888/2019 e, sob a perspectiva da declaração de ajuste anual, os NFTs deverão ser declarados na aba “outros bens e direitos”, de forma ampla.

O que pode fazer o contribuinte

O contribuinte, portanto, deverá tomar uma decisão que impactará suas operações: (i) poderá enquadrar os NFT’s como criptoativos, ainda que não se amoldem perfeitamente à definição prevista no artigo 5º da IN RFB 1.888/2019, devido ao fato de não possuírem unidade de conta (unidade de medida própria), dando mais relevância à forma do token não-fungível (o fato de ser um ativo criptográfico inserido em uma tecnologia de registro distribuído) do que ao teor dos direitos subjacentes ao NFT que podem (ou não) ser transferidos ao usuário-adquirente; (ii) poderá optar por tributar os direitos subjacentes ao NFT que são efetivamente transferidos, à luz de sua real natureza (ex: direito autoral).

No cenário (i), partindo-se da premissa de que os NFT’s seriam criptoativos aos olhos do Fisco, além da necessidade de cumprimento para com as obrigações acessórias previstas na IN 1.888/2019, e ignorando-se aqui o fato de que não possuem unidade de medida própria, haveríamos de concluir que esses tokens não-fungíveis são equiparados aos ativos financeiros, ainda que o conteúdo referenciado pelo hiperlink contido no NFT esteja relacionado a uma obra de arte, sendo assim tributados (como ativos financeiros).

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Sob esta perspectiva e partindo-se da premissa de que as partes negociantes são pessoas físicas, a permuta de BTC por um NFT daria ensejo à incidência de imposto de renda na modalidade ganho de capital, à luz dos artigos 21 da Lei 8.981/1995 e 22 da Lei 9.250/1995, de modo que o ganho de capital seria tributado com base em alíquotas progressivas (15%, 17,5%, 20% e 22,5%), com a isenção de R$ 35 mil/mensais atribuível à alienação, isolada ou conjunta, de bens e direitos de pequeno valor.

O adquirente do NFT apuraria o ganho de capital relativo à alienação (na modalidade permuta) do BTC (valor na data da permuta subtraído do custo de aquisição), enquanto que o “vendedor” (o artista que emitiu o NFT) aplicaria as alíquotas do IR-ganho de capital ao valor pelo qual foi vendido o NFT, sendo o custo de aquisição zero, exceto na hipótese de o artista lograr êxito em comprovar os custos envolvidos na emissão do NFT (ex: gasto com energia, gas fees (taxas) da rede Ethereum, etc).

Pessoa jurídica

Em se tratando de pessoas jurídicas (adquirente ou alienante do NFT), a situação é mais complexa e demanda a análise: (i) da natureza da receita obtida (se operacional ou não); (ii) do registro contábil da criptomoeda utilizada como meio de troca (se estoque, cessão de direito, investimento ou ativo intangível) e do próprio NFT; e (iii) do regime de tributação da pessoa jurídica (lucro real, presumido ou Simples Nacional).

Quais seriam, entretanto, os efeitos tributários das operações de venda e permuta de NFT’s caso não fossem equiparados aos ativos financeiros — tal como sugerido na hipótese (ii) acima referida —, haja vista o não preenchimento do conceito de criptoativo cunhado pela RFB na IN 1.888/2019?

Sob a perspectiva do adquirente que realiza o “pagamento” do NFT com criptomoedas, nada muda, de modo que continuariam sendo aplicáveis as diretrizes da IN 1.888/2019 e as regras de apuração de ganho de capital anteriormente analisadas.

Sob a ótica do artista alienante, todavia, dar-se-ia relevância ao conteúdo do NFT, ou seja, ao teor dos direitos transmitidos, e não à sua forma criptográfica e descentralizada, o que, a nosso ver, privilegia a função desempenhada pelo referido token.

Essa abordagem materialista ou conteudista privilegia os direitos subjacentes ao NFT que são transmitidos. Nessa perspectiva, a tributação do NFT deverá ser aquela que seria outorgada, em “operações tradicionais”, aos direitos transmitidos com o NFT. Se derem acesso à obra de arte ou a parte dos direitos dela, assim deverá ser tributado o NFT.

A título de exemplo, sendo a atividade “principal” do artista a confecção de obras de arte e a transmissão total ou parcial de direitos a elas subjacentes por meio de NFT’s, haveríamos de tributar a alienação de NFT’s como produto do trabalho (renda ordinária) do artista (e não como ganho de capital).

Caso o artista desenvolva sua atividade por meio de uma pessoa jurídica, restaria evidente a caraterização de tais receitas como de índole operacional, devendo ser tributadas como tal sob o respectivo regime jurídico (lucro real, presumido ou Simples Nacional).

Por fim, sob a perspectiva da tributação sobre o consumo de NFT’s, teríamos duas opções de curso de ação:

(i) enquadrando-se os NFTs como criptoativos (submetidos à IN 1.888/2019), poder-se-ia alegar que as operações não estão submetidas à incidência de ICMS, na medida em que, devido à ausência de consumo material imediato, sendo meras transações financeiras, não existiria circulação de mercadoria;

(ii) dando-se ênfase ao teor dos direitos transmitidos por meio do NFT, bem como partindo-se da premissa de que haveria, de fato, a transmissão de parcela ou da totalidade dos direitos subjacentes à propriedade intelectual, poder-se-ia discutir a aplicação das regras previstas no Convênio CONFAZ ICMS 59/91, caso estejamos tratando de saídas realizadas pelo próprio autor. 

Sobre os autores

Daniel de Paiva Gomes é professor de Direito e doutorando em Direito Tributário pela PUC/SP. É autor do livro ‘Bitcoin: a Tributação de Criptomoedas’, publicado pela Thomson Reuters Revista dos Tribunais.

Eduardo de Paiva Gomes é mestre em Direito Tributário, professor de cursos de pós-graduação e Conselheiro Suplente do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo.