Texto: Ethel Rudnitzki | Infográficos: Bruno Fonseca
Com a promessa de ser maior que o Bitcoin, a empresa One Life vendeu mais de 2,5 milhões de euros (o equivalente a R$ 11,25 milhões) em falsas criptomoedas para brasileiros entre 2015 e 2016, de acordo com documentos internos analisados pela Agência Pública. A moeda OneCoin, porém, jamais chegou a ser negociada em bolsas de criptomoedas, contrariando promessa aos compradores.
Agora, a empresa é investigada internacionalmente por fraude bancária. Uma ação coletiva de vítimas do golpe nos Estados Unidos levou à prisão de associados da One Life, entre eles o búlgaro Konstantin Ignatova, irmão da fundadora Ruja Ignatova, que se encontra desaparecida e é procurada pelo FBI.
Fundada na Bulgária em 2014, a companhia surfou na onda de crescimento das criptomoedas. Em um ano, já tinha clientes em mais de 200 países, incluindo o Brasil, onde começou a operar em janeiro de 2015. Hoje, a One Life afirma ter mais de 3,5 milhões de clientes no mundo.
As moedas só podem ser compradas por meio de pacotes vendidos em euros por associados da empresa, que recebem comissões pelas vendas, num esquema de pirâmide financeira.
José Aldeirton Bezerra, conhecido como Tito Bezerra, foi um dos primeiros revendedores da One Life no Brasil, onde a empresa chegou a ter mais de 1.800 associados, segundo documentos internos.
Em entrevista à Pública, ele conta que investiu 5 mil euros e acumulou mais de 1 milhão de OneCoin. “Depois que eu saí da empresa, eles simplesmente fecharam minha conta.” Apesar de ter recuperado seu investimento inicial por meio das comissões, ele afirma que a empresa o enganou e lamenta: “Eu não tenho mais nada”.
Outros associados continuam suas atividades relacionadas à One Life no Brasil. Paula Cristina Lopes e seu marido, Roberto Bulat, gerenciam a página OneCoin Brazil no Facebook e no YouTube e promovem a empresa pelo país. Segundo eles, a One Life tem mais de 200 mil clientes brasileiros, incluindo associados e não associados.
Sobre as denúncias de fraude, eles negam e justificam que a OneCoin é um investimento de longo prazo. “Ninguém pode acusar que perdeu alguma coisa. Ele pode não ter a liquidez desejada nesse momento ainda”, afirmou Bulat à reportagem.
A Pública enviou e-mail à assessoria de imprensa da One Life – único contato disponibilizado –, mas a empresa não respondeu até a publicação.
Em seu site, a empresa alega estar sofrendo perseguição de grandes instituições financeiras por ter lançado um produto que pode quebrar os bancos mundiais. “A One Life acredita que todas as acusações da mídia são resultado de uma campanha bem organizada, obstinada a prejudicar nossa reputação e acabar com nosso negócio”, publicou a empresa em nota em janeiro de 2018.
Esse discurso antiestablishment acompanha a empresa desde seu início. Logo na página inicial de seu site, ela convida os visitantes: “Participe da revolução financeira”.
A missão da One Life seria “bancar os desbancados”, nas palavras da presidente, dra. Ruja. Por isso, todos os pacotes vêm com material de educação financeira produzido pela própria empresa por meio de seu projeto One Academy.
Criptofake
Tradicionalmente, a mineração de criptomoedas é feita por softwares que conferem operações matemáticas por meio do chamado “proof of work”, ou prova de trabalho. Ou seja: as máquinas trabalham por um período de tempo resolvendo equações para comprovar sua validade. No fim do processo, são obtidas as moedas, com códigos próprios e criptografados. Para evitar duplicações e fraudes, todas as transações são registradas em blocos de cálculos matemáticos públicos e encadeadas de maneira que não é possível fazer alterações – o chamado blockchain.
O Bitcoin, criptomoeda mais popular do mundo, funciona dessa maneira e seu software é de código aberto, ou seja, todos têm acesso à sua tecnologia de maneira descentralizada – uma forma também de garantir sua autenticidade.
Já a One Life alega ter uma tecnologia própria para a mineração. Os usuários podem minerar as moedas OneCoin por meio de tokens vendidos pela empresa, que funcionam como vales-mineração. Investidores devem aplicar seus tokens para minerar moedas em rodadas de mineração periódicas organizadas pela empresa. Após alguns dias, as moedas aparecem nas contas dos usuários.
Para especialistas em criptomoedas, a falta de transparência nos blockchains é indício de fraude. “É bom desconfiar e se perguntar por que esse blockchain está fechado. Isso afeta o processo de transparência que dá a segurança e a confiabilidade nesse sistema”, alerta o pesquisador Diogo Cortiz, do Centro de Estudos sobre Tecnologias Web (Ceweb.br).
O mistério sobre o blockchain da OneCoin foi investigado pela BBC britânica na série de podcasts “Missing Cryptoqueen”, que trata do desaparecimento da dra. Ruja, fundadora da empresa.
O repórter Jamie Bartlett entrevistou Bjorn Bjercke, especialista em Bitcoin convidado pela One Life em outubro de 2016 – dois anos após o lançamento da moeda – para formular do zero um blockchain para a empresa. Constatando que se tratava de uma fraude, ele recusou a oferta e decidiu denunciar o esquema.
“Me disseram que se tratava de uma startup de criptomoedas na Bulgária e que estavam interessados no meu currículo para a vaga de CTO, gerente-chefe de tecnologia. Mas, quando perguntei sobre o trabalho que teria que fazer, eles disseram que precisavam de um blockchain e que não tinham um blockchain àquela altura”, contou à BBC. O especialista explica que sem um blockchain a empresa não pode garantir que as criptomoedas tenham valor. “Não há preço verdadeiro para a OneCoin, apenas um número que a Ruja inventou.”
De acordo com a One Life, o valor de uma OneCoin hoje é de 29,5 euros, equivalente a R$ 132,75. Quando a mineração foi iniciada, a empresa dizia que cada moeda valia 0,5 euro, ou R$ 5. Em junho de 2016, revendedores brasileiros prometiam uma valorização para até 100 euros por moeda até o fim de 2017 – o que não ocorreu.
A One Life garante que sua moeda é “única, segura, global e sem risco de inflação”.
Entretanto, em entrevista à Pública, João Canhada, CEO da FoxBit, corretora de criptomoeda brasileira, alerta que esse tipo de promessa é também indício de fraude. “Se há garantia de rentabilidade fixa em um investimento de renda variável, é o principal indício de que tem algum problema. Isso vale para o investimento em bolsas tradicionais ou mesmo para criptoativos”, explica.
A falta de transparência da empresa, somada às denúncias, fez com que as moedas nunca fossem listadas em bolsas de criptomoedas.
Essas bolsas fazem cotações diárias do valor de criptomoedas com base no dólar. Mas, no caso da OneCoin, não é possível comprar ou vender as moedas fora da rede da One Life. Ou seja: para o mercado, a OneCoin não vale os 29,85 euros que a empresa determina.
Relatórios internos
Documentos obtidos pela equipe do podcast da BBC e enviados à Pública mostram que as vendas no Brasil começaram em janeiro de 2015 e, apenas nos seis primeiros meses, chegaram a movimentar 500 mil euros (equivalente a R$ 2,25 milhões) – uma parcela pequena dos 333 milhões de euros movimentados no mundo inteiro.
Nas 23 primeiras semanas de 2016, foram vendidos 2,2 milhões de euros (equivalente a R$ 10 milhões) em pacotes de OneCoin no Brasil – quase 3% da receita mundial no período.
Como a OneCoin não está disponível em corretoras de criptomoedas, as vendas são realizadas por meio de pacotes que vão de R$ 500 a R$ 250 mil. Os produtos incluem certo número de tokens para mineração, apostilas da One Academy e pontos para os usuários participarem da rede de revenda de pacotes, tornando-se associados.
Os vendedores associados são remunerados pela venda de pacotes e aumento da rede de membros. Recebem 10% do valor adquirido; desse valor, 60% são pagos em euros e o restante, em tokens. Além disso, a cada venda, os associados recebem pontos e crescem na cadeia de vendedores, passando a receber bonificações mensais.
Oficialmente, a One Life chama sua estratégia de vendas de marketing multinível – uma dinâmica que não é ilegal, mas pode ser indício de esquemas de pirâmide.
Para ampliar sua rede, a empresa realizou uma série de eventos pelo mundo com espetáculos de dança, acrobatas e convidados muito bem vestidos. “Somos mais do que apenas uma moeda. Nós criamos um mundo ao redor da OneCoin. E isso é apenas o começo”, anunciou a dra. Ruja em uma conferência da One Life em 2016 em Londres.
Os membros vestiam tanto a camisa da empresa que tinham seu próprio gesto de identificação, fazendo o formato de uma moeda com a mão.
No Brasil, entre janeiro e junho de 2015, 266 pessoas já haviam se associado, segundo dados enviados pela BBC à Pública. No mesmo período de 2016, quase 1800 pessoas se associaram à One Life no país.
Um quase ex-milionário
No fim de 2014, Tito Bezerra foi convidado a se associar à One Life por um conhecido de Portugal, onde a empresa já atuava. “Ele me falou que era uma moeda virtual, mas que, diferente do Bitcoin, era uma moeda centralizada e que teria uma valorização grande. Mas eles não cumpriram nada do que disseram”, conta.
Com grande investimento inicial, ele ganhou posição de status entre os associados e frequentou eventos de promoção no México e na Europa. Era um dos principais revendedores no Brasil e conta que chegou a ter mais de 46 mil pessoas abaixo dele na hierarquia do marketing multinível. “Eu coloquei 5 mil euros e ganhei mais dinheiro do que isso, mas é claro que eu gostaria de ter minhas moedas de volta.”
Ele decidiu se desvincular quando percebeu que a moeda não seria aceita por bolsas de criptomoedas. De imediato, sua conta foi bloqueda. Se a OneCoin realmente tivesse o valor estipulado e fosse aceita no mercado, Tito teria mais de 29,85 milhões de euros em moedas, ou R$ 134,3 milhões.
“Eles ganharam muito dinheiro e não colocaram a moeda no mercado. Disseram que fariam isso em um ano, depois passou para dois anos. E depois disseram que o tamanho do código criado era pequeno e que fariam um novo algoritmo. Então passei a ter uma certa descrença sobre o que eles falaram.”
Ainda que no Brasil a One Life não esteja sob investigação, a empresa já é reconhecida como esquema de pirâmide por corretoras de criptomoedas. “Aqui eu nunca vi ninguém negociando essa criptomoeda. Comigo nunca tentaram, mas, se tivessem solicitado, eu teria avisado para que a pessoa não se envolva com ela”, diz Canhada, da FoxBit.
Promessa de educação financeira
A explosão do Bitcoin – que chega a valer mais de R$ 30 mil – foi o que levou o tio da estudante Isabella Barbosa a investir na OneCoin no início de 2016. Acreditando que seria uma oportunidade, e com a segurança de ganhar um curso de capacitação para criptomoedas, o empresário presenteou a sobrinha com um pacote da One Life no valor de 110 euros, equivalente, hoje, a cerca de R$ 500.
O investimento que a então estudante de 17 anos ganhou dava direito a um pacote de 800 tokens que valeriam como “vale-mineração” das moedas OneCoin, além das apostilas de nível 1 da One Academy.
Mas Isabella não pode usufruir do suposto rendimento das moedas. Deixou as apostilas e tokens para depois e, quando foi acessar sua conta no início de 2017, percebeu que estava bloqueada sob a justificativa de que ela não havia cadastrado seus dados.
A jovem recorreu ao e-mail disponibilizado no site da empresa para tentar resolver seus problemas, sem sucesso. “Mas não tem nada em português e eles não me deram retorno. Até hoje estou bloqueada e não consigo fazer nada”, contou à Pública. A empresa não tem representante oficial no Brasil.
O único ambiente em que a OneCoin é aceita como moeda é a plataforma DealShaker, criada pela própria empresa. O site funciona como um site de compras virtual, mas para fazer transações é preciso criar uma conta na One Life. No Brasil, são ofertados alguns produtos como peças de automóvel, serviços como massagem, corte de cabelo e até estada em hotel.
José Reinaldo Ritter, dono do Ritter Hotel, em Porto Alegre, passou a aceitar OneCoin como forma de pagamento há aproximadamente um ano e já recebeu cerca de 40 clientes. Ele oferece quarto individual, duplo e luxo na DealShaker pelo valor de 2,18, 2,61 e 4,36 OneCoin, respectivamente – que, segundo a cotação da One Life, teria o valor de 65, 79,7 e 130,15 euros (ou R$ 292,50, R$ 358,64 e R$ 585,66).
“Tem dado certo”, conta. Ele recebe os pagamentos em sua conta na One Life e nunca usou o valor – está esperando a moeda ser aberta para o mercado.
Investigada nos EUA
Nos Estados Unidos, uma ação coletiva levou à prisão preventiva de Konstantin Ignatova, irmão da fundadora da One Life, Ruja Ignatova, em março deste ano, pelo FBI. A mesma investigação procura a dra. Ruja por fraude.
Sebastian Greenwood, “master” distribuidor da One Life, também foi preso em 2018, na Tailândia, e depois extraditado para os Estados Unidos. Outro americano associado da empresa, Mark Scott, enfrenta acusação de lavagem de dinheiro e fraude bancária.
Sobre a prisão de Konstantin, a One Life publicou nota à imprensa pedindo que respeitem a presunção de inocência do associado: “Se ele for condenado, terá a oportunidade de contestar o caso diante da corte de justiça americana”.
No topo da pirâmide
Apesar das investigações nos EUA, a OneCoin continua sendo vendida no Brasil e em diversos países pelos revendedores associados.
Paula Cristina Lopes da Silva e seu marido, Roberto Bulat, são membros da rede desde 2016 e hoje alimentam as redes sociais da OneCoin Brazil – com Z mesmo –, mas afirmaram à Pública que hoje não vendem mais pacotes.
“Somente acompanhamos a evolução da plataforma para a comercialização da moeda. Como nós temos muitas pessoas no Brasil que ficaram sem um intermediário da OneCoin, a gente recebe as informações e repassa pra essas pessoas que ficaram desapadrinhadas”, explica Bulat.
No YouTube, Paula e Bulat – como se apresentam aos seguidores – publicaram vídeos entre 2016 e 2017 nos quais aparecem com seus clientes que compraram pacotes de OneCoin, tiram dúvidas sobre a moeda e a empresa e convidam novas pessoas a participar da rede.
Em 2016, o casal foi a Londres e a Paris para participar de eventos da One Life. No Brasil, foram a São Paulo, Paraíba, Pernambuco, Bahia e Brasília para promover a empresa.
Paula e Bulat são empresários e já tiveram uma série de empreendimentos, entre eles uma cooperativa de seguros, uma prestadora de serviço de mudanças e a One Life – Produtos e Serviços Virtuais Ltda., registrada como prestadora de serviços de treinamento em desenvolvimento profissional e gerencial.
A Pública entrevistou-os por telefone, colocado no viva-voz para que ambos respondessem. Indagados sobre o investimento na One Life, Paula respondeu: “Eu imaginava como se fosse a compra de um apartamento ainda no projeto. Algo que levaria um certo tempo para que acontecesse”.
Questionados sobre a moeda não estar sendo negociada nas corretoras de criptomoedas e queixas de clientes, eles justificaram que se trata de um investimento de longo prazo e culpam a crise econômica no país. “No Brasil, praticamente nenhum negócio está andando, não é só a OneCoin”, disse Bulat.
Sobre as acusações de fraude, Bulat culpa também indivíduos mal-intencionados. “Em qualquer projeto dessa magnitude, existem as pessoas que fazem tudo corretamente e existem as fakes.”
Dois dias depois de terem falado com a reportagem, a página OneCoin Brazil publicou comunicado aos associados dizendo que eles não devem falar com a imprensa sem autorização expressa da One Life.
Paula e Bulat não respondem a nenhum processo pela venda de pacotes da One Life no Brasil.