Giulio, 39, um trader de “shitcoins” que mora na Sicília e ativista ambiental, gosta de falar sobre criptomoedas.
Quando perguntado se ele irá gentilmente enumerar os motivos pelos quais o que quer que ele tenha investido (sejam NFTs, ether ou poocoin, os quais têm pouca distinção para ele) é “genuinamente bom” e irá mudar o mundo.
Ele ganhou um bom dinheiro especulando nessas coisas – o suficiente para desembolsar uma entrada em um novo apartamento luxuoso.
Cripto está, sem dúvidas, invadindo sua vida, assim como seus espaços físicos. Ao entrar na casa de Giulio, em um bonito bairro residencial de Roma, conhecido por seus inúmeros restaurantes caseiros, ele apresenta uma estranha disposição de aparelhos próxima à sua janela.
Algo tubular, branco e reluzente que lembra um funil virado para cima e que parece com um brinquedo sexual biônico, na verdade é uma máquina de mineração “Helium Bobcat”, um dispositivo que gera cerca de € 150 por mês com a criptomoeda Helium (HNT), sem mais perguntas.
E nenhuma pergunta foi feita. Assim como muitas coisas em cripto, Giulio (cujo primeiro nome foi omitido a pedido dele porque tem medo de que seu chefe descubra que ele negocia shitcoins) basicamente não faz ideia de como funciona.
Ele o considera como uma espécie de confusão espantosa, apesar de ser simplesmente mágica.
“Você deveria comprar um!”, pressionou-me recentemente e de forma um tanto provocante.
Se você pesquisar sobre Helium, vai ver que é uma espécie de “rede das pessoas” e descentralizada, acumulando recompensas em token a usuários que, assim como Giulio, mantém nós sendo executados em sua casa.
Acho que é um caso de uso interessante, mas o que é consideravelmente bem mais interessante é a forma como pessoas como Giulio fazem isso sem entender completamente seu propósito – ou, sejamos bem sinceros: sem se importar.
Na verdade, de acordo com uma pesquisa recente, 1/3 das pessoas que compraram cripto não sabem nada sobre esses ativos.
Fazem parte de um influxo recente de investidores “comuns” de varejo que entraram no bonde no auge da febre das ações de meme/NFTs e não entendem como a tecnologia funciona.
Esses neófitos (jovens e usuários relativamente experientes com a internet, apesar de ainda não terem conhecimento em cripto) vão oferecer palavras vazias, afirmando o potencial impressionante da tecnologia, repetindo os mantras de pontos de discussão de líderes e personalidades cripto do Twitter.
No entanto, muito frequentemente, isso funciona como um mero pretexto para alocar muito dinheiro.
Para muitos investidores, só existe uma proposta de valor real e crível: cripto, como um todo, sobe muito alto e muito rápido.
Pense no recente incidente no Twitter que envolve “tropoFarmer”, que ameaçou comentaristas no Twitter de processo após terem tirado uma captura de tela que “salvava” seu avatar NFT muito caro para si.
Evidentemente, ele investiu bastante naquela imagem (um desenho de um gorila com obesidade mórbida) sem entender que estava adquirindo um contrato em blockchain meramente unindo a imagem, e não uma imagem que estava, por exemplo, descrita por metadados registrados na rede Ethereum e acessível apenas por ele.
E tropoFarmer não era o único.
“Todos os painéis e tal me confundem bastante”, afirmou Nick Kenny, consultor estratégico e independente em Londres que lucrou US$ 60 mil após um investimento de US$ 10 mil em ether (ETH) no fim de 2020.
Ele foi o primeiro a admitir não ser um investidor cripto qualificado: ele negocia com base em conselhos de um amigo informado e possui XRP, litecoin (LTC) e EOS – escolhas que arrepiariam qualquer fanático por cripto.
Caso você acredite que seu investimento em ether demonstra certa experiência ao possível potencial dos NFTs e das DeFi em mudar o mundo, ou seja lá o que for, Kenny acrescentou que “nenhum sábio sabe por que” seus investimentos aumentaram.
“Só olho para minha conta na Coinbase de vez em quando”, explicou.
Quando pedi a Kenny, de forma complacente, que explicasse ether, seu principal investimento, ele não apresentou os méritos do mecanismo de queima de taxas da EIP-1559 ou ponderar sobre a futura migração para o proof of stake (PoS) ou nada disso.
Ele explicou: “Com contratos autônomos e blockchain, você pode…” antes de reconsiderar, disse, de forma defensiva: “Olha, eu não quero ficar parecendo um idiota”.
Mas Kenny não é um idiota nem Alannah, 22, uma recém-graduanda cuja compreensão sobre seus investimentos em cripto totaliza uma espécie de tarefa adicional sem sentido (Alannah também pediu que seu sobrenome não fosse divulgado para que seus amigos da Geração Z descobrissem que ela estava se dando bem).
“De início, pesquisei sobre mineração de bitcoin e tudo isso, sobre como funciona”, disse. “Tenho certeza que eu acharia isso interessante, mas só estou aqui para ganhar dinheiro, eu acho.”
Isso funcionou para ela: no último ano, ela transformou US$ 10 mil em cerca de US$ 35 mil, também ao investir em ether (seu plano original era investir em um “esquema de pirâmide” chamado Kuailian).
Ela dependeu completamente de um youtuber chamado Crypto World Josh. “Ele faz previsões e essas previsões se concretizam”, contou. Ele usa linguagem técnica que parece científica, “assim como existe aquele negócio chamado de ‘séries de Fibonacci’”.
Claramente, existe muito novo dinheiro entrando de pessoas que não necessariamente se importam com o que estão comprando.
Era uma vez, febres de investimento localizadas em países individuais (como as tulipas na Holanda). Isso se expandiu para mercados acionários multinacionais e, em seguida, redes financeiras interconectadas (a bolha dos imóveis).
Cripto (“dinheiro digital!”) é a primeira febre digital a ser diretamente propagada na internet. Tudo o que você precisa para participar é uma conexão Wi-Fi, uma carteira e uma pequena quantia de fiduciária.
Pondo lenha na fogueira do “medo de perder uma oportunidade” (ou FOMO, na sigla em inglês) está uma infinidade de influenciadores on-line que fornecem aos investidores de varejo sentimentos acolhedores e confusos sobre ter feito um bom investimento (suas próprias líderes de torcida no Twitter).
Cameron Winklevoss até diz que é um imperativo moral trazer as pessoas ao bitcoin antes que sucumbam à futura praga da hiperinflação!
Aqui está Matt Damon promovendo a Crypto.com. E aqui está Paris Hilton impulsionando NFTs. Tom Brady, Snoop Dogg, Jimmy Fallon… todos estão nessa.
Até mesmo o homem mais rico do mundo, Elon Musk, orgulhosamente promove “meme coins”. O dinheiro é, no máximo uma alucinação consensual em massa e, no mínimo, uma espécie de arte performática.
É verdade. Existe uma certa evidência sólida de que até mesmo esses famosos não entendem cripto. Mas quem se importa? São mais bem-sucedidos do que você, otário. São bem mais bonitos e, sem dúvidas, mais ricos.
Você não precisa mais fingir que entende como isso tudo realmente funciona: simplesmente compre uma máquina de mineração Helium Bobcat que um cara com dentes brancos no YouTube está anunciando e observe, absorva e pague sua hipoteca.
E reze para que, dentre os milhões de grandes idiotas na internet, você não seja um dos que tenham grandes prejuízos.
*Traduzido e editado por Daniela Pereira do Nascimento com autorização do Decrypt.co.