Há 6 mil anos, Gilgamesh, um hipotético burocrata da região da Mesopotâmia (atual Iraque), está encarregado de registrar a produção de uma fazenda para cobrança de impostos para o líder local.
Ele cunha dificultosa e lentamente os símbolos que representam cada um dos itens produzidos e suas quantidades em uma tábua de argila pesada e irregular, num processo lento e laborioso.
Pensando em meios de melhorar aquela prática, o brilhante Gilgamesh embarca numa epifania daquelas. Ele intui que, no futuro, toda a sociedade se organizará em torno de registros públicos, sejam contábeis, de registros de propriedade, nascimentos, mortes, de contratos e até um diário de todas as decisões e ações do governo.
Apesar da dificuldade para manipular e armazenar tantas tábuas de argila, nosso amigo resolve ignorar estas limitações, confiando que novas tecnologias conseguirão superá-las. Assim, nosso personagem imaginário pode levar sua própria imaginação ao limite.
O que o visionário Gilgamesh tem em comum com um imaginativo empreendedor de uma startup do Crypto Valley, na Suíça?
Talvez muito mais do que pode parecer à primeira vista…
Blockchain, registros públicos e smart contracts
Uma das aplicações que mais tem sido discutida para os blockchains é exatamente a de servir como meio de realizar registros públicos. Além de experiências relevantes para registro de terras em países como Suécia, Índia e Geórgia, experimentos como o OriginalMy, que permitem registro em blockchain de documentos digitais, apresentam-se como possíveis complementos ou até alternativas para mecanismos existentes há décadas, séculos e até milênios.
O caso dos smart contracts é ainda mais instigante. Existe um sem número de tecnologias sociais implementadas para viabilizar que contratos sejam firmados e respeitados.
Isso inclui instituições e instrumentos burocráticos de toda sorte, como leis, cartórios, assinaturas, cortes de apelação etc. Smart contracts podem, pelo menos em diversos casos, substituir essa parafernália.
Por isso, alguns autores descrevem blockchain como uma nova tecnologia social, capaz de criar ordem sem precisar de leis para tanto, configurando o que o jargão jurídico denomina uma lex cryptographica (ver Blockchain and The Law, Primavera De Filippi e Aaron Wright).
O objetivo aqui não é fazer uma lista exaustiva das aplicações e iniciativas em blockchain relacionadas a registros públicos e contratos inteligentes. Isso você acha numa googlada. A proposta é refletir sobre a epifania de nosso amigo Gilgamesh e tentar fazer um paralelo com nossa realidade.
Se o futuro dele somos nós, podemos examinar a história que nos liga para extrapolar o nosso próprio futuro.
Um mecanismo para cada novo paradigma de sociedade
Novos patamares de sociedade demandam novas formas de organização e de registro. Por sua vez, novas formas de registro demandam novas tecnologias e até ciências completamente novas! Essa tem sido a história de todos nós…
Quando o homo sapiens era nômade caçador-coletor, quase não havia métodos de registro e nem mesmo a contagem era muito desenvolvida.
Heranças contemporâneas dos humanos desse período, algumas tribos isoladas da Amazônia e aborígenes australianos contam “um, dois, três, muitos” e acabou-se.
Suas línguas não têm palavras para nada mais que isso. Pesquisas demonstram que sua noção de quantidades é logarítmica, em vez de linear, o que os aproxima de crianças não alfabetizadas (ver Alex No País dos Números, Alex Bellos).
Foi a revolução agrícola e seu excedente de produção que levaram o ser humano a incrementar seu interesse por números e a entender que 10 é distante de 9 o mesmo que 2 é de 1, ao contrário do que as mentes logarítmicas dos nossos mais antigos ancestrais pensavam.
Mesmo assim, por milênios, os registros de produção eram por fazenda. Por isso, parear uma pedrinha com cada cabeça de gado ou saca de grãos era mais do que suficiente como método de registro. Esse procedimento, porém, não era exatamente adequado para reportar a produção de diversas fazendas para um líder local, por exemplo.
A partir da formação dos primeiros grandes aglomerados urbanos (exatamente lá na Suméria de Gilgamesh) é que a complexidade social acabou gerando uma nova forma de registro bem mais sofisticada.
A própria matemática evoluiu como consequência desse desenvolvimento. Tábuas de barro da Suméria e da Babilônia já continham soluções extremamente espertas para problemas matemáticos com um nível de dificuldade que fariam corar a maioria dos estudantes secundaristas e muitos universitários do século XXI (ver História da Matemática, Tatiana Roque).
Blockchain para uma sociedade digital global e descentralizada?
Inúmeras outras evoluções ocorreram desde as tábuas de argila da Suméria e da Babilônia, sempre provocando e se alimentando das transformações do mundo. Dando continuidade a esse processo, a Internet abriu as portas para um novo tipo de sociedade: digital, globalizada e mais descentralizada.
Com suas próprias regras (ou falta delas), a Internet gerou sua própria mídia e seus ídolos, suas próprias formas de produzir (open source), aprender (MOOCs etc) e inovar (colaborativamente), e até suas próprias revoluções (Primavera Árabe). E muito mais…
Seu advento talvez só seja comparável à invenção da imprensa por Gutenberg, em torno de 1440, que democratizou a informação e resultou, ao longo dos séculos seguintes, na Reforma Protestante, na educação universal, no Iluminismo, na derrocada do poder absoluto de reis e papas, ou seja, numa nova sociedade!
Se você acha que a Internet não se compara a isso, lembre-se que são só 30 anos desde que Sir Tim Berners-Lee nos legou aquilo que as pessoas entendem como a Internet: o HTTP (HyperText Transfer Protocol).
É inevitável pensar que essa nova sociedade também demande sua própria forma de registro.
Muitos autores entendem que empresas como Google, Facebook, Uber etc centralizaram a Internet, contra as expectativas originais.
Para Don Tapscott, autor tanto de Wikinomics quanto de Blockchain Revolution, a blockchain reacende a oportunidade de que Internet cumpra sua missão de construir uma sociedade global, digital e efetivamente descentralizada.
Se essa nova forma de registro vai ser algo tão importante assim na história da humanidade, se vai gerar uma nova ciência ou se as limitações tecnológicas existentes ou a reação de incumbentes vão bloquear seu desenvolvimento, afirmo que ninguém sabe, nem pode saber.
Quem acha que sabe pode estar enganado. Como K’uk’ B’alam, outro imaginário burocrata inteligentíssimo, esse da civilização Maia. Cheio de ideias brilhantes e projetos maravilhosos, nosso triste gênio nunca poderia imaginar não só que suas invenções não iriam prosperar como mereciam, mas que sua sociedade iria perecer por motivos até hoje debatidos.
Como nosso herói Gilgamesh, só nos resta sonhar. E trabalhar muito para ajudar a construir um mundo que valha a pena. Assim, quem sabe algum diletante do futuro também tenha motivos para lembrar de nós…
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