Como a Receita enxerga as criptomoedas enquanto aplicações financeiras no exterior | Análise

Os advogados Daniel e Eduardo de Paiva Gomes analisam a nova instrução normativa da Receita Federal, que cria regras para a tributação de criptomoedas no exterior
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Foto: Shutterstock

Hoje (13), a Receita Federal publicou a IN 2.180/2024, que regulamenta a Lei 14.754/2023. Para o “mundo cripto”, isso traz alguns impactos, que procuramos apresentar abaixo, haja vista a importância do tema e sem prejuízo de futuras atualizações de entendimento.

Em primeiro lugar, merece aplausos a RFB, seja por manter o vanguardismo na definição de temas complexos, seja por ser sensível às considerações do mercado que foram trazidas no âmbito da nota técnica da ABCripto acerca da regulamentação infralegal da Lei 14.754/2023.

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Ativo virtual como aplicação financeira

O inciso I do artigo 9º, da IN 2.180/2024, não menciona ativos virtuais, diferentemente da redação do inciso I, do §1º do artigo 3º, da Lei 14.754/2023. Entretanto, a IN 2.180/2024 dá concretude ao §3º do artigo 3º da referida lei.

Isso porque, de acordo com a norma, estaremos diante de um ativo virtual qualificado/equiparado a uma aplicação financeira sempre que referido ativo virtual (i) seja uma representação digital de alguma das figuras mencionadas no inciso I do artigo 9º da IN 2.180/2024; ou (ii) possua natureza e características de uma aplicação financeira.

O grande desafio, me parece, será interpretar o que é “ter a natureza” ou “possuir as características” de uma aplicação financeira. Tokens DeFi estão incluídos aqui, já que são instrumentos financeiros híbridos? Nos parece plausível afirmar que aplicações financeiras estão atreladas à ideia de receita financeira e ativo financeiro.

Outro dado relevante é a definição contábil de instrumento financeiro. De todo modo, nos parece que o conceito de receitas financeiras pode ser obtido mediante a interpretação conjunta dos artigos 397 e 404 do Decreto 9.580/2018, artigo 1º do Decreto 8.426/2015, artigo 17 do Decreto-lei 1.598/1977, artigo 9º da Lei nº 9.718/1988, § 2º do artigo 76 da Lei nº 8.981/1995 e artigo 11 da Lei nº 9.249/1995.

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Os intermediários no exterior

A aplicabilidade da “nova sistemática de tributação” demanda, ainda, outro requisito, que é o intermediário localizado no exterior. Andou bem a RFB quando escolheu o local do intermediário como fator determinante para esclarecer o que se considera como “localizado no exterior”.

A norma não fala explicitamente do caso da “autocustódia”, mas nem precisaria, a nosso ver. A norma foi objetiva: considera-se localizado no exterior quando o intermediário está no exterior.

Se o intermediário está no Brasil ou se não há intermediário (caso da autocustódia, em que prevalece a residência do holder), quando da ocorrência do fato gerador (aquisição de renda, enquanto produto do trabalho ou do capital investido; e alienação, para fins de ganho de capital), aplica-se o regime geral até então vigente.

Ainda em relação à localização do intermediário no exterior, há um ponto que demanda esclarecimentos: é que o artigo 9º, §2º, menciona “custodiados ou negociados por instituições localizadas no exterior”. Como fica o caso em que a negociação (o encontro de ordem de compra e venda) ocorre por meio de uma corretora localizada no Brasil, mas a custódia (no “backoffice”) ocorre por meio de um parceiro localizado no exterior?

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Nos parece, que o elemento preponderante deve ser a avaliação do fluxo corretora <> usuário final enquanto tomador do serviço. As relações entre a prestadora de serviço de ativo virtual e seus fornecedores (que, eventualmente, prestam serviço de custódia), não deveria ser determinante.

As definições de ativo virtual

A RFB não precisa definir “ativo virtual”. Na verdade, entendemos que nem é competência da RFB trazer essa definição, da mesma forma como ela não precisa definir o que é um livro.

Um ponto demanda atenção sobre esse tópico. A definição de ativo virtual está prevista na lei 14.478/2022 e refere-se à representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de “pagamentos” ou com “propósito de investimento”.

Tokens que proporcionem acesso a bens e serviços (algo ser consumível materialmente) e security tokens não são ativos virtuais, por expressa exclusão prevista também no artigo 3º da Lei 14.478/2022.

Nesse ponto, curiosamente, há uma espécie de “alargamento” da definição de ativo virtual tal como referenciada pela IN 2.180/2024. A título exemplificativo, cotas de fundos de investimento estão fora do escopo objetivo da Lei 14.478/2022, conforme previsto no inciso IV do artigo 3º. Ou seja, juridicamente, a representação digital das cotas de investimento é um “não-ativo virtual”, mas continua sendo um valor mobiliário tokenizado (PO CVM 40; Ofícios Circulares 4 e 6 sobre tokens de renda fixa).

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Para fins da IN 2.180/2024 e da Lei 14.754/2023, todavia, como estaríamos diante de uma representação de um ativo descrito no artigo 9º da IN e artigo 3º da Lei 14.754/2023 (cotas de fundos de investimento), esse token estaria coberto pela regra das “aplicações financeiras no exterior”, ainda que não seja possível afirmar que se trata de um ativo virtual para fins da Lei 14.478/2022.

Isso traz uma “impressão” (por interpretação literal) de que a IN e a Lei 14.754/2023 distorceram/ampliaram a noção de ativo virtual, contrariando o artigo 3º, inciso IV da Lei 14.478/2022. Não nos parece que seja o caso.

Para evitar controvérsias, uma acomodação interpretativa ou modificação simples da norma resolveria a celeuma. Explicamos: melhor seria dizer que a “regra nova” aplica-se a ativos virtuais que se qualifiquem, pela sua natureza e características, como aplicações financeiras localizadas no exterior, bem como se aplica às representações digitais (ainda que não sejam ativos virtuais para fins da Lei 14.478/2022) de aplicações financeiras descritas no artigo 9º da IN e artigo 3º da Lei 14.754/2023.

Dessa forma, não há risco de se entender que houve uma distorção da definição de ativo virtual e o fato de um dos ativos descritos no inciso I do artigo 9º ser ofertado em “forma token” não desnaturará sua natureza material.

O que determina um ativo virtual uma aplicação financeira no exterior?

A sistemática nova demanda o preenchimento de quatro requisitos: (i) ser um ativo virtual que, pela natureza e características, seja qualificado ou equiparado a uma aplicação financeira; ou, ser uma representação digital de algum dos ativos mencionados no inciso I do artigo 9º da IN 2.180/2024; (ii) ser negociado ou custodiado por meio de um intermediário (não há prevalência entre a negociação e a custódia, mas deve ser preponderante o serviço tomado pelo usuário final titular dos ativos virtuais e representações digitais de aplicações financeiras à luz da ocorrência dos fatos geradores); (iii) o intermediário precisa estar localizado no exterior.

E o Bitcoin?

Dúvidas interpretativas surgirão sobre a possibilidade de qualificar Bitcoin (BTC) como uma aplicação financeira, haja vista que, quando analisado “in natura”, o BTC é um ativo não-financeiro, conforme reconhecido pelo próprio FMI. É por isso, inclusive, que, no passado, a RFB qualificava criptoativos, indistintamente, como ativos financeiros sujeitos a ganho de capital, mas atualizou seu entendimento para afirmar que criptoativos são ativos sujeitos a ganho de capital (suprimindo a menção a ativo financeiro).

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Isso poderia levar à impressão de que o BTC, por definição, não poderia ser abrangido pela Lei 14.754/2023 e pela IN 2.180/2024. Entretanto, não nos parece que esta seja a melhor interpretação. Isso porque, a partir do momento que o usuário deixa de ter o BTC “in natura” e passa a possuir um risco de contraparte perante o prestador de serviço de ativo virtual, quando envia seu BTC para uma corretora, tem-se que, a partir daí, prevalece o propósito de investimento de um direito oponível a terceiros, ainda que tal oponibilidade não esteja vinculada ao ativo em si, mas, sim, ao intermediário.

Assim, o BTC negociado por meio de intermediários, seria um ativo virtual com propósito de investimento. Logo, se o intermediário que negocia ou custodia BTC para o usuário estiver localizado no exterior, seria plausível afirmar que este direito oponível a terceiro plasmado no BTC seria uma aplicação financeira.

Deixamos o questionamento derradeiro: esse propósito de investimento, sob a perspectiva do usuário, pode ser um elemento relevante na qualificação como aplicação financeira, quando avaliado o tema sob a perspectiva dos artigos 118 e 136 do CTN?

Todo quanto exposto evidencia e corrobora a ideia de natureza camaleônica contextual-alternativa. Camaleônica, pois, tal como o camaleão muda a pigmentação da sua pele, os criptoativos são camaleônicos como o ouro, que ora é mercadoria submetida ao ICMS, ora é ativo financeiro sujeito ao IOF.

Mas por que contextual-alternativa? Porque partimos da ideia de que todos os criptoativos, enquanto “linhas de código”, são ativos intangíveis, pois, de fato, são imateriais, mas, a depender da sua função, dos direitos e do conteúdo econômico que os informam, possuirão, alternativamente, natureza jurídica de ativo financeiro, commodity, royalty etc., a depender de seu contexto.

Cenas para os próximos capítulos.

Sobre os autores

Artigo escrito por Daniel de Paiva Gomes e Eduardo de Paiva Gomes, sócios de VDV e Paiva Gomes Advogados. Ambos são doutorandos (PUC) e mestres (FGV) em Direito Tributário. Daniel também é autor do livro Bitcoin: a tributação de criptomoedas.