O dilema do planejamento sucessório de criptoativos

O Brasil não dispõe de mecanismo jurídico que trate exclusivamente da transmissão de criptomoedas entre gerações
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A aquisição de criptoativos, seja para investimentos diversos, seja para guarda com fins de reserva de valor, tornou-se recorrente nas últimas décadas, principalmente dentre o público jovem, amante das novas tecnologias e entusiasta da alcunhada criptoeconomia.

No cenário global, a ascensão das criptomoedas e a adoção da tecnologia blockchain em aplicabilidades diversas não só conquistaram milhões de usuários, como também despertaram o interesse de empresas, instituições financeiras e governos.

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Na contramão do esperado, haja vista a incorporação cotidiana crescente e a alta demanda institucional, o ordenamento jurídico brasileiro, conservador que é, tem se mostrado, em diversos aspectos, insuficiente ou mesmo inexistente para regrar determinadas situações práticas. Uma delas refere-se à sucessão patrimonial.

É inegável que criptoativos detêm valor econômico e, como tal, a partir da aquisição, essa classe de ativos passa a compor o patrimônio do indivíduo. O problema surge, em alguns casos, apenas quando aberta a sucessão.

Não persistem maiores entraves se o possuidor de criptoativos utilizar empresas para a respectiva guarda e armazenamento. No bojo do processo de inventário, tendo os sucessores conhecimento quanto a existência desses ativos, podem requerer ao magistrado que seja oficiada à empresa custodiante a fim de que informe o saldo, e, na sequência, proceda à liquidação deste, convertendo-o em moeda fiat, no caso das exchanges. Posteriormente, a quantia pode ser depositada em conta judicial vinculada ao processo de inventário, passando, então, a integrar o monte.

O dilema verdadeiramente ocorre quando o proprietário dos criptoativos realiza a custódia por conta própria, valendo-se de cold wallets ou paper wallets, por exemplo. Aliás, convém pontuar que essa postura tem sido amplamente recomendada devido aos inúmeros casos de golpes perpetrados utilizando essa classe de ativos como engodo.

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A título de exemplo, em 2013, o jovem Matthew Moody, minerador de bitcoin, no auge dos seus 26 anos, faleceu em um acidente de avião enquanto sobrevoava um cânion na Califórnia (EUA), sem deixar registro das suas chaves privadas, tornando as criptomoedas inacessíveis aos seus herdeiros.

O impasse descrito tende a crescer nos próximos tempos com o aumento de adeptos aos criptoativos. É neste contexto que pode emergir como uma alternativa simples o compartilhamento das chaves de acesso a uma pessoa de confiança.

Entretanto, não é incomum que o processo de inventário se torne o verdadeiro pomo da discórdia no âmbito familiar. Esse fator torna extremamente temerário que apenas um dos sucessores, em regra, seja o detentor das senhas. Afinal, o montante de criptoativos pode, não raras vezes, superar a legítima parcela patrimonial que o falecido pode livremente dispor, correspondente à metade do monte mor (total dos bens que serão partilhados).

Assim, surge a questão: hoje em dia há mecanismos eminentemente jurídicos que assegurem aos sucessores o acesso a essa parcela de ativos?

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A legislação pátria ainda não dispõe de instituto exclusivo capaz de solucionar amplamente a questão. Logo, nenhum lhe servirá perfeitamente ou é à prova de falhas. Todavia, existem meios que contornam essa problemática; um deles é ressuscitar o testamento cerrado, que caiu em desuso nas últimas décadas.

Sabe-se que o testamento serve para a última manifestação de vontade do testador, o qual pode realizar reconhecimento de filhos, perdão a indigno, nomeação de tutor ou curador, deserdação, dentre outros atos.

Diferentemente do testamento público, que, como a própria nomenclatura sugere, é dotado de publicidade que frustra o fim aqui colimado, o testamento cerrado, também denominado de secreto ou místico, pode ser escrito pelo próprio testador e possui caráter sigiloso.

Esse instrumento é submetido à aprovação ou autenticação lavrada por um tabelião, na presença do testador e duas testemunhas. A sua vantagem, como elucida o professor Carlos Roberto Gonçalves, “consiste no fato de manter em segredo a declaração de vontade do testador, pois em regra só este conhece o seu teor. Nem o oficial nem as testemunhas tomam conhecimento das disposições, que, em geral, só vêm a ser conhecidas quando o instrumento é aberto após o falecimento do testador”.

O testamento é lacrado perante o tabelião e a sua validade depende da entrega, incólume, ao juízo competente, após o falecimento do disponente. Neste sentido, ao distribuir o inventário, pode o advogado requerer em sede de tutela cautelar apenas a abertura, diferindo o registro e a publicação do testamento, dada a peculiaridade do caso, bem como pleitear a nomeação de perito especializado para apuração do quanto equivale em moeda nacional a carteira de criptoativos e a sua consequente liquidação.

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É intrigante imaginar que um instrumento considerado arcaico, outrora cosido à mão e que recebia lacre com pingos de vela, possa ser um meio jurídico seguro para tornar efetiva a transmissão entre gerações de algo tão inovador e tecnológico como os criptoativos. O futuro nos revelará, enfim, de que forma passado, presente e futuro se alinharão em prol da evolução.

Sobre a autora

Nathaly Diniz é advogada especializada na estruturação jurídica de projetos que utilizam a tecnologia Blockchain. Consultora na área regulatória para tokenização de ativos. Programadora de smart contracts pela PUC/SP.