A narrativa que permeou o último ciclo de valorização do Bitcoin foi a do ouro digital, baseada na sua escassez, durabilidade, divisibilidade, portabilidade, facilidade de estocagem, verificabilidade e segurança.
Se esta narrativa foi suficiente para multiplicar o valor de mercado do BTC por mais de 20 vezes desde as mínimas de 2018 até as máximas de 2021, podemos imaginar o que poderá se tornar o Bitcoin, caso, além do potencial de se tornar o ouro digital da economia global, puder desfrutar também de um ecossistema de finanças descentralizadas, o DeFi.
Para dar um pouco de contexto, é importante entendermos o que significa DeFi. O termo nasceu em 2018, quando desenvolvedores buscavam um nome para definir o ecossistema de aplicações financeiras construídas em tecnologia blockchain, que surgia na rede Ethereum.
O DeFi possui quatro pilares principais: o usuário faz sua própria custódia; é um ecossistema global no sentido em que não há barreiras geográficas para que pessoas ou instituições participem; o código que define estas aplicações é aberto de forma que qualquer um pode acessá-lo, auditá-lo ou mesmo utilizá-lo em outras aplicações e o controle e a autoridade sobre ele são distribuídos, a conhecida descentralização.
O protocolo do Bitcoin, como foi concebido, permite a transferência de valores entre agentes de mercado que satisfazem os quatro pilares citados. Deste modo, pode-se argumentar que a primeira aplicação de DeFi já criada foi o próprio Bitcoin.
Entretanto, dadas as limitações de programabilidade e escalabilidade do Bitcoin, foi na rede Ethereum, com seus contratos inteligentes, que a DeFi ganhou aplicações mais sofisticadas.
O surgimento de protocolos como Chainlink, MakerDao, Compound, Uniswap e Synthetix, apenas para citar alguns, permitiram que, além da transferência de valores, uma série de outros serviços fossem disponibilizados. Entre eles, estão a criação de stablecoins colateralizadas, de empréstimos colateralizados, de formadores de mercado e trocas de tokens (swaps) e até mesmo de derivativos em blockchain.
Além disso, novas soluções para escalar a rede Ethereum como os projetos de segunda camada Arbitrum, Optimism, Starknet e ZKSync prometem ampliar a gama de serviços que o atual ecossistema pode oferecer.
Bitcoin “inteligente”
Enquanto a rede Ethereum e outras blockchains que utilizam a conhecida Ethereum Virtual Machine (EVM) desfrutam das facilidades que os smart contracts trouxeram, a ausência de contratos inteligentes em Bitcoin dificulta o desenvolvimento de DeFi, motivando outras formas de criar este ecossistema. Talvez a mais notável tentativa seja a do protocolo Stacks.
Stacks é uma blockchain que introduziu o mecanismo de consenso chamado Proof of Transfer em que todas as suas transações são registradas na rede Bitcoin, mantendo nela um histórico completo de transações e estados do Stacks.
Este protocolo incrementa as possibilidades da rede Bitcoin com a criação de smart contracts e uma maior capacidade de processamento e velocidade de transações. Nela existem todos os serviços financeiros disponíveis na rede Ethereum. Outros protocolos com o mesmo objetivo são RSK e Liquid Network.
Finalmente, a solução de segunda camada Lightning Network, que viabiliza a escalabilidade do Bitcoin por meio de canais de pagamento, tem desenvolvido funcionalidades que podem permitir o crescimento de um ecossistema de DeFi em Bitcoin.
A chegada dos Ordinals
Em paralelo a esses desenvolvimentos, um acontecimento inusitado pavimentou o caminho para se construir um ecossistema de DeFi na própria rede Bitcoin, sem o uso de protocolos de segunda camada ou side-chains. O protocolo de NFTs Ordinals, desenvolvido em torno da atualização Taproot, surgiu em janeiro deste ano e trouxe um grande interesse para a rede Bitcoin ao longo do primeiro semestre.
O que ninguém esperava é que um protocolo focado em NFTs desse origem ao protocolo BRC-20 que viabilizou a emissão de tokens na rede Bitcoin. O primeiro e o mais conhecido deles, Ordi, fomentou uma grande especulação em torno dos tokens BRC-20 em abril, um mês após sua criação. Algumas corretoras importantes listaram o token Ordi, trazendo ainda mais euforia para o protocolo.
Outro protocolo de NFTs que ganhou alguma repercussão foi o Bitcoin STAMPS, que não depende da atualização Taproot, mas que utilizou parte da infraestrutura já existente do tradicional grupo Counterparty. Em Bitcoin STAMPS, foi criado o protocolo SRC-20 também deu origem a tokens na rede Bitcoin.
Estes dois acontecimentos merecem menção porque um token é uma estrutura primordial de DeFi, sendo a sua criação na rede Bitcoin um marco no sentido de iniciar discussões mais profundas sobre o desenvolvimento de outras estruturas, entre elas AMMs (Automated Market Makers), colateralização de ativos, empréstimos, swaps e mesmo DAOs na própria rede Bitcoin; repetindo, sem o uso de sidechains ou de soluções de segunda camada.
Talvez estes desenvolvimentos servem a propósitos específicos, distintos dos projetos mencionados anteriormente, uma vez que a escalabilidade pode ser ainda uma questão. Entretanto, um problema como levar a prestação de serviços financeiros tão complexos como os que existem no mundo globalizado para a rede Bitcoin provavelmente não terá solução única, mas uma variedade de soluções especializadas em diversos níveis.
Sobre o autor
Bernardo Bonjean é empreendedor com extensa experiência na indústria financeira e fintechs, que começou a carreira em gestão de portfólio no Banco Pactual em 2002. Em 2008, integrou o time da XP investimentos como Head of Sales and Trading, período em que participou do curso OPM em Harvard e saiu para fundar a Avante. Durante a pandemia do Covid-19, Bernardo reviveu a paixão por cripto com a Metrix.
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