É bem verdade que a sociedade brasileira, no que se refere à inclusão digital e disseminação da cultura dos smartphones, criptomoedas e mídia social, se coloca já em fase avançada de migração do mundo real para o virtual, o que não deixa de ser curioso uma vez que não são todas as tecnologias que se fazem democratizar com tanta eficiência.
No Brasil, o telefone de última geração, para muitos, chega antes que o saneamento básico. A ferramenta de controle sobre o apetite parece chegar antes que o alimento.
Nesse passo apressado, a população vem acumulando uma nova gama de bens que escapam às clássicas definições populares de móveis, imóveis ou dinheiro. Trata-se do patrimônio digital criado pelos indivíduos dentro do seu ambiente virtual e digital, tais como conteúdo em redes sociais, criptomoedas, vídeos, fotos e outros dispositivos.
Hoje em dia, é de fácil compreensão a todos a importância dos bens e ativos dessa natureza, seja pelo seu valor econômico – se houver – ou pelo valor afetivo ou de definição de personalidade social de um determinado indivíduo.
Ocorre que, no Brasil, assim como em diversos outros países, ainda não existem leis específicas que definam claramente a forma como deve ser o tratamento jurídico de tal patrimônio digital, inclusive no que tange o Direito das Sucessões, razão pela qual é muito bem-vinda a iniciativa na reforma do Código Civil Brasileiro de dar tratamento específico ao tema, sob a denominação de “Patrimônio Digital”, sendo “o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencentes a um indivíduo ou entidade, existentes em formato digital”.
Neste trecho, tirado do anteprojeto de reforma do Código Civil apresentado ao Senado, as criptomoedas foram incluídas claramente como uma das formas de patrimônio digital com valor econômico e, além disso, mais adiante no texto que poderá vir a ser o Novo Código Civil Brasileiro, todo patrimônio digital de natureza econômica foi expressamente abrangido pelos bens passíveis de transmissão por herança.
Para dar adequado cumprimento aos dispositivos de lei, o anteprojeto também prevê que os prestadores de serviços digitais deverão criar um ambiente e medidas adequadas à disposição para proteção e transmissão de tais bens.
É importante, no entanto, distinguir que dentro do espectro de patrimônio digital, existem duas classificações de bens: aqueles que contam com natureza econômica, como investimentos em criptomoedas ou perfis monetizados em redes sociais; e outros cujo valor econômico é inestimável e consistem em informações e arquivos pessoais ou perfis que formam a personalidade social no meio digital, sem cunho econômico.
É importante ressaltar que, se o assunto for bens digitais com valor econômico, muitas das disposições legais e costumes aplicados aos demais bens conhecidos há décadas poderão ser aplicados e auxiliar no regramento das diversas questões que irão surgir.
Para tais bens, parece mais intuito que a existência documentada inequívoca do bem, como algo pertencente ao falecido, e passível de atribuição de valor de mercado poderá ser suficiente para transmissão aos sucessores, mesmo nos limites da legislação atualmente em vigor.
No âmbito jurisprudencial, ainda não existe uma padronização de entendimento a respeito do tema, principalmente quando se trata de ações que discutem o acesso dos herdeiros às informações pessoais de pessoa falecida em plataformas e redes sociais.
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Nesses casos, enquanto as famílias alegam que teriam direito a acessar tais informações para guarda-las como memórias do ente falecido, muitos magistrados têm entendido que autorizar tal acesso violaria o direito a intimidade do falecido.
Importante defender a disseminação do testamento como prática cultural, o que ainda não ocorre no Brasil, pois certamente evitaria muitos litígios e impasses judiciais acerca do tema ou, ao menos, auxiliaria nas decisões judiciais a serem tomadas em disputas que se eternizam no Poder Judiciário em inventários e partilhas de bens.
Mensagens e conteúdo privados, ainda que qualificados como patrimônio digital, podem revelar natureza absolutamente pessoal a merecer a proteção atribuída em outras situações para defesa da privacidade e intimidade do indivíduo.
Por outro lado, algumas redes sociais já contam com uma política bem definida sobre a destinação dos perfis de pessoas falecidas. É o caso do Instagram, que recentemente divulgou a possibilidade de herdeiros de usuário falecido excluírem o perfil ou, se preferirem, transformá-lo em memorial.
Diante de todo o imbróglio que paira nesse momento sobre o tema, resta aguardar uma unificação mais clara do atual entendimento dos Tribunais Brasileiros, assim como acompanhar os debates a esse respeito que estão sendo utilizados como base para o anteprojeto de Reforma do Código Civil, que deve ser mais específico sobre as regras legais referentes à Herança Digital.
No entanto, vale lembrar que o Código Civil atual, que entrou em vigor em 2003, teve seus anteprojetos iniciados mais de 20 anos antes de sua vigência e até 2002, portanto não se pode contar com uma célere e efetiva alteração legislativa para que o tema seja melhor conduzido pelos Tribunais e pelas próprias redes sociais e demais plataformas.
Dessa forma, o futuro da herança digital merece um debate urgente, de maneira que dialogue com o cotidiano de uma sociedade hiperconectada acerca das disposições de última vontade a serem feitas sobre esse tipo de patrimônio.
Sobre os autores
Amanda Helito é advogada, professora, sócia e co-fundadora do PHR Advogados, especializada e atuante em Direito de Família e Sucessões. Membro da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB/SP e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Otávio Pimentel é sócio co-fundador do Pimentel, Helito & Razuk Advogados (PHR Advogados) com atuação especializada em Direito de Família e Sucessões, ex-membro assessor do Tribunal de Ética da OAB-SP e ex-professor em Planejamento Sucessório na FK Partners.
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