Falando sério, quem já não suspeitava que havia algo errado com a demora que o CEO da Tesla, Elon Musk, teve para comprar Bitcoin (BTC)? Falo isso por dois motivos: (I) seu ex-sócio, Peter Thiel, é um early adopter, e advoga a favor da criptomoeda há anos; e (II) a missão da empresa em que Thiel e Musk eram sócios era literalmente “criar a nova moeda mundial”.
Claro, ele é bem ocupado, e estudar sobre Bitcoin toma bastante tempo, especialmente quando se está desenvolvendo naves espaciais, carros elétricos, ‘não-lança-chamas’ e buracos de velocidade. Ainda assim, ele mesmo disse que sabia uma coisa ou outra sobre dinheiro por causa do PayPal.
Dito isso, fica ainda mais vergonhoso quando ele fala que está conversando com desenvolvedores de Dogecoin (Doge) para melhorar a escalabilidade de primeira camada da moeda (ou seja, para aumentar o número de transações dentro da blockchain) e diminuir seu potencial de emissão de carbono (já que ela usa mineração à prova de trabalho, igual ao Bitcoin).
Não quero me alongar na complexa discussão entre PoW e PoS, então vamos para os outros dois pontos simples.
Descentralização e escalabilidade
Quando você usa o fato de ser o homem mais rico do mundo para mudar o código de uma moeda piada a seu bel prazer, ela deixa de ser descentralizada. Não importa se você está fazendo melhorias para o meio no código de sua blockchain ou se vai aumentar a escalabilidade na primeira camada para “garantir uma moeda descentralizada para um número maior de pessoas”. Se uma única pessoa tem influência suficiente para mudar todo o protocolo quando quiser, não existe descentralização; é um projeto natimorto.
Incrível, Roger Ver II, como nunca ninguém pensou nisso? Parece até que não teve uma guerra em 2017 sobre esse assunto, resultando no fork Bitcoin Cash (BCH).
Então ele quer blocos de 10MB a cada 6 segundos, o que gera 52,5TB por ano. Quem consegue comprar 52 terabytes de HD todo ano para sustentar esse elefante branco?
Para fins de comparação, a blockchain do Bitcoin tem hoje 337GB nos seus mais de 12 anos de história. Ou seja, em 12 anos, o Bitcoin não usa nem 1% do espaço que o Musk quer usar em um ano de Dogecoin (ou MuskCoin?). Nenhuma pessoa comum conseguiria ter um nó completo assim. Lá se vai sua descentralização.
Não muito depois, Musk falou que um sistema de camada única conseguiria transportar todas as transações da humanidade. Pegando emprestado o exercício mental do Peter Todd, se cada ser humano fizer por volta de 5 transações por dia, vezes 8 bilhões de pessoas, dá 460 mil transações por segundo. Com blocos de 1 minuto – como é hoje no Dogecoin -, geram blocos de 7GB. Como a blockchain é assíncrona, a mineração necessita que blocos se propaguem em 0,1 segundo. Para isso, é necessário uma largura de banda de 210GB/s. Quão próximo sua Internet de casa está deste número?
Conclusão
Acho que depois disso, fica claro que na melhor das possibilidades, ele está terrivelmente desinformado sobre questões técnicas do Bitcoin. Na pior, ele está falando sobre isso maliciosamente.
Por fim resta uma pergunta: quem são os desenvolvedores do Dogecoin com quem ele está conversando? Como esse projeto é aberto e público no Github, é fácil ver que praticamente não há melhorias de código desde 2017. Além disso, os maiores contribuidores são desenvolvedores do Bitcoin Core. Fica então no ar a dúvida de quem são essas pessoas misteriosas que possivelmente acabaram de começar a se envolver com o projeto.
Sobre o autor
Breno Brito é empreendedor, especialista em investimentos certificado pela Anbima e estudioso de antifragilidade. Traduziu o livro ‘O Pequeno Livro do Bitcoin’ e revisou a tradução de ‘O Padrão Bitcoin’.