Imagem da matéria: O Bitcoin e seu enquadramento como moeda no sistema legal
(Foto: Shutterstock)

A inserção das criptomoedas no cotidiano negocial é uma realidade inexorável, sendo o bitcoin a espécie mais popularmente conhecida e trocada no mundo todo.

Com variações de preço constantes, as negociações envolvendo bitcoins têm o potencial de aviltar ou insuflar a quantificação da contrapartida pecuniária que investidores estão dispostos a pagar, gerando dano.

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Com a rápida evolução do poder computacional e a facilitação do acesso dos cidadãos a essas novas tecnologias, as atividades humanas têm sofrido alterações que desafiam a disciplina jurídica à ressignificação.

Tarefas dos mais diferentes tipos conduzem práticas comerciais dependentes da captação de um volume colossal de informações.

Essas práticas culminam na formação do que se convencionou chamar de Big Data, englobando dados não estruturados, semi-estruturados e estruturados. O “tamanho” é concebido como uma meta em constante movimento, variando de terabytes a muitos zettabytes.

E, no célere ambiente em que esta evolução toma corpo, chama a atenção a dificuldade do Estado de legislar para garantir a tutela das novas contingências relacionadas ao volume de dados coletados.

Em maior grau, o mesma acontece ao tratamento dispensado a tais informações — especialmente no mercado de capitais. 

Isso porque, uma vez que, em que pese grande riqueza possa ser extraída desse novo modelo de operacionalização das atividades econômicas, também grande periclitância pode advir da vulnerabilidade técnica dos novos investidores.

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Exploração da volatilidade do bitcoin

Um exemplo recente ocorreu na Espanha — e se reproduz em praticamente todo o globo —, onde a prática de crime de estelionato na web se deu a partir da exploração da volatilidade do preço do bitcoin.

Houve, então, condenação criminal com reflexos civis. O caso foi levado ao Tribunal Supremo do país e, na Sentença nº 326/2019, marcada pelo ineditismo, a Corte se pronunciou pela manutenção da condenação.

Por conseguinte, a Corte destacou a necessidade de que o ressarcimento às vítimas ocorresse em moeda corrente (o euro, no caso), e não mediante a devolução dos valores, em bitcoins, reconhecidos como ativos financeiros e não como moeda.

Partindo deste tema- problema, é possível identificar o enquadramento do bitcoin (e de tecnologias correlatas que utilizem o blockchain) como moeda, e os impactos disso para a quantificação do dano na responsabilidade civil.

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Primeiramente, é importante ressaltar que a decisão proferida pelo Tribunal Supremo da Espanha caminha no sentido de salvaguardar relações jurídicas atingidas pela incessante alavancagem tecnológica.

Isso porque houve reflexos inegáveis sobre mercados baseados em dados (data-rich markets) e para os quais se procura conferir solução adequada à reparação civil.

Alguns pontos se realçam no acórdão, sendo a descentralização inerente ao modelo peer-to-peer da rede blockchain o mais importante, uma vez que a rede visa descentralizar totalmente seus processos de geração e confirmação de transações.

Em virtude do enorme poder de computação que o sistema demanda — aproximadamente 70.000 terahashes por segundo (TH/s) — o grande obstáculo enfrentado para a manutenção da rede é exatamente seu custo.

Impasses sobre o bitcoin

Um estudo realizado pela JPMorgan Chase & Co., por exemplo, tentou localizar o valor intrínseco do bitcoin para compreender sua volatilidade.

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Todavia, o núcleo dessa discussão — que adquire notável relevância para a correta compreensão dos desdobramentos do precedente espanhol — reside no controle financeiro que governos e bancos deixam de ter na transição para um modelo de circulação de riquezas baseado em blockchain e norteado pelos pools de mineração.

Dentre os diversos impactos que se deve considerar no tocante à decisão espanhola, impõe-se destaque à imposição da reparação civil como desdobramento da sanção penal imposta ao agente, e que concerne à recuperação do statu quo ante, ou seja, à devolução do valor subtraído de cada vítima do crime de estelionato praticado nas operações de high-frequency trading e que foram geradoras de danos a diversas pessoas naturais (enumeradas no acórdão), com imposição da responsabilização subsidiária a uma das pessoas jurídicas envolvidas nessas operações, e absolvição de outra, por ausência de veiculação de pretensão reparatória contra a mesma.

A despeito da vedação à utilização do ouro como pagamento, ou da moeda estrangeira, é importante ressaltar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou, mesmo à época do vetusto Código Civil de 1916, pela licitude de contratos que previssem obrigações de pagar em moeda estrangeira, mas desde que houvesse a conversão em moeda nacional.

É de se considerar, nesse contexto, que a condenação foi delimitada pelo próprio juízo criminal espanhol.

Bitcoin e a legislação brasileira

Fosse no Brasil, a se considerar que a Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, alterou a redação do artigo 387, inciso IV, e do artigo 63, parágrafo único, do Código de Processo Penal, trazendo como inovação a possibilidade de o magistrado fixar um valor mínimo para reparar os danos advindos do ato ilícito, não abrindo mão do contraditório e da ampla defesa das partes, seria igualmente possível a imposição da responsabilidade civil ao fim e ao cabo da persecutio criminis.

Somam-se a tais dispositivos o artigo 91, inciso I, do Código Penal, que prevê, dentre os efeitos da condenação, o de “[t]ornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime”; e o artigo 475-N, inciso II, do Código de Processo Civil, que elenca, no rol de títulos executivos judiciais, a sentença penal condenatória transitada em julgado.

Investimentos e bitcoin

Noutra toada, impõe-se mencionar os impactos da condenação que recaem sobre a pessoa jurídica. Para tanto, é preciso distinguir o papel desempenhado pela empresa Host Europe Iberia SL, absolvida, era o provedor de aplicações, responsável por hospedar os computadores/servidores pelos quais foram processadas as transações com as carteiras de bitcoins dos clientes agenciados.

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Tal como ocorre com as agências de rating, para as quais a doutrina aponta — inclusive à luz da legislação brasileira — a possibilidade de imposição de responsabilidade civil contratual e extracontratual, caso tenham causado dano na esfera patrimonial das entidades avaliadas e/ou dos investidores em decorrência do conteúdo indicado em seus relatórios de classificação de riscos, não é de se afastar a possibilidade de que seja atribuído o dever amplo de reparar danos causados pela má gestão de agências de investimentos que trabalhem com carteiras de criptomoedas.

No que diz respeito à segunda empresa, Host Europe Iberia SL, preponderou o fato de não ter havido pretensão específica para a sua responsabilização no plano civil.

No entanto, sendo ela a responsável por hospedar os sistemas pelos quais foram processadas as transações em bitcoins, ou seja, sendo a referida empresa um provedor de aplicações que fornece serviços de hospedagem (host) de dados em servidores de sua propriedade, algumas constatações importantes podem ser extraídas para fins de comparação do precedente espanhol com a legislação brasileira.

Um derradeiro aspecto elucidativo da inovadora decisão do Tribunal Supremo da Espanha guarda relação à possibilidade de imposição da função punitiva da responsabilidade civil.

Diferenças na aplicação das leis

Essa é uma viva discussão nos sistemas jurídicos anglo-saxãos, onde as funções dissuasória e punitiva (exemplary e punitive damages), que não se confundem e que se revelam como novos vértices da doutrina da responsabilidade civil, transcendem as funções reparatória e compensatória usualmente estudadas.

O debate é especialmente importante no contexto da responsabilidade civil extracontratual, que, como visto, tem cabimento em face de violações que ultrapassem os meandros da contratação formulada.

E, em se tratando de desdobramentos de ilícitos criminais, passam a ostentar contornos ainda mais palpáveis no que diz respeito à exploração massiva da cobiça e da ingenuidade alheias.

Na Espanha, a doutrina majoritária se posiciona contrariamente à implementação dessa função da responsabilidade.

Sendo a função reparatória inegavelmente preponderante na responsabilização civil, é certo que outros mecanismos — como a função punitiva — não podem ser absolutamente descartados.

Para além do caso analisado no precedente sob escrutínio, importa considerar que agências de investimento que operam com carteiras de bitcoin (e/ou de outras criptomoedas) já são uma realidade em todo o globo, e se proliferam em ritmo acelerado.

Violação de dados

Violações que ultrapassem a discussão criminal e passem a afetar o campo civil se tornarão mais constantes em vista do volume massivo de dados em operações de high-frequency trade.

Isso demandará não apenas intervenção específica para a garantia da proteção dos direitos dos investidores, mas para a manutenção de certo controle, a nível global, sobre o poder dessa novel tecnologia em detrimento do mercado e para assegurar o respeito à privacidade e aos marcos regulatórios voltados à proteção de dados.

O futuro das criptomoedas é visto pela doutrina sob perspectiva alvissareira, como um inegável avanço no sentido da reestruturação social em torno da evolução tecnológica e da formação de uma cibercultura.

Mas a adesão a ideais de eliminação do controle estatal, ou de propagação do software livre, deixam aberto largo espaço para o cometimento de abusos (inclusive na órbita criminal), em violação a direitos fundamentais — como a privacidade e a proteção de dados pessoais — de todos os envolvidos nessa dinâmica.

Por ser um precedente de exórdio, o aresto da Tribunal Supremo da Espanha simboliza o início de uma importante tendência ao equacionamento do controle interventivo estatal sobre a Internet e sobre as tecnologias dependentes de modelos de ponta como o blockchain, sendo de curial realce a atuação em torno da clara delimitação dos regimes aplicáveis a todos os envolvidos.

Sobre os autores

João Victor Rozatti Longhi é Defensor Público no Estado do Paraná com Pós-Doutorado em Direito.

José Luiz de Moura Faleiros Júnior é advogado e Mestre em Direito.

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