No dia sete de junho de 2021 o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, anunciou ao mundo, através de um vídeo pré-gravado numa conferência de Bitcoin em Miami, que estava introduzindo o Bitcoin como moeda de curso legal em El Salvador, um país do tamanho do Sergipe com um PIB de magros US$ 27 bilhões.
Uma semana depois do anúncio, a lei que regulamentaria a bitcoinização da economia salvadorenha estava no Congresso e, sem maiores discussões ou debates sobre as implicações da introdução do Bitcoin como moeda de curso legal, a lei tinha sido aprovada com a promessa de entrar em vigor três meses mais tarde. Assim, no dia 7 de setembro, dia da independência do Brasil, El Salvador fez história e se converteu no primeiro país em adotar o Bitcoin como moeda de curso legal. A partir desse momento todos os holofotes estavam no país e cada passo do presidente millenial era acompanhado pelo mundo com muita atenção.
Para todos os efeitos, o pioneirismo de El Salvador converteu o país em um laboratório para o mundo e, se tudo desse errado para o “Sergipe centroamericano”, o risco de contágio seria mínimo e o experimento passaria ao esquecimento sem deixar maiores rastos.
Muita coisa errada
Entretanto, contrário das expectativas do presidente Bukele, conforme afirmou em uma entrevista com Peter McCormack, “o que poderia dar errado?”, muita coisa tem dado errado. Oito meses depois da entrada em vigor da Lei Bitcoin, o projeto, que já está dando claros sinais de cansaço, enfrenta falta de credibilidade, adesão mínima, sérias questões técnicas, falta de transparência e o pior, tem desencadeado a perda da confiança na capacidade do país de pagar a sua dívida pública.
Oito meses foram suficientes para mostrar ao mundo as consequências da adoção do Bitcoin como moeda de curso legal. Hoje, o mundo sabe o que não deve ser feito, mas ainda não conhece os verdadeiros benefícios da adoção do Bitcoin (ou qualquer outra criptomoeda), nem qual seria a melhor maneira, se é que existe, de dar este passo.
Em El Salvador, os preços continuam em dólares e praticamente 100% das transações continuam sendo efetuadas na moeda estadounidense. A confiança na chivo wallet (o que ao meu ver foi um dos maiores erros que o governo pode ter cometido) simplesmente acabou. Na verdade, nunca chegou a emplacar. A mais importante das promessas, o envio de remessas do exterior a custo zero, no último mês mal chegou a 1.5% do total.
Na comunidade internacional de bitcoiners, apesar da empolgação inicial, creio que ficou claro que o projeto de Bukele tem se mostrado contrário à filosofia do Bitcoin. O Bitcoin foi idealizado por Nakamoto para remover a mediação do “terceiro confiável”, ou seja, os bancos, mas Bukele adotou o caminho inverso, tirou os bancos e colocou o governo como intermediário, o que minou a credibilidade no projeto. A transparência também brilhou pela sua ausência e, diante da oposição interna ao projeto, Bukele lançou mão da repressão.
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De joelhos
A implementação da Lei Bitcoin, a escalada autoritária e a ausência de uma política econômica que vá além da improvisação tem colocado El Salvador de joelhos diante dos credores da dívida pública. Para as classificadoras de risco, El Salvador se aproxima rapidamente do calote e, neste momento, Bukele tenta conseguir dinheiro das maneiras mais criativas possíveis, sendo uma delas a potencial nacionalização do sistema previdenciário, o que lhe ajudaria a não dar o calote na dívida, mas no longo prazo, apenas afundaria de vez El Salvador e deixaria milhões de salvadorenhos sem aposentadoria.
A promessa do lançamento do bono vulcão passou de ser uma promessa ousada e inovadora a mais uma promessa incumprida por Bukele. Enquanto isso, Bukele continua anunciando projetos faraônicos, como a construção de um aeroporto no leste de El Salvador e a construção de um sistema ferroviário que ligaria El Salvador de Leste a Oeste.
Estes dois projetos se somariam a tantas outras promessas, como por exemplo, o lançamento de um satélite; a construção de um ferry boat que ligaria El Salvador com a Costa Rica; a criação da maior orquestra sinfônica de crianças do mundo; a construção de Bitcoin City; a mineração de Bitcoin fazendo uso de energia geotérmica (enquanto que El Salvador ainda importa parte da energia elétrica que consome); a construção de um metrô na cidade de São Salvador e um enorme etcétera de promessas incumpridas.
Sem uma política econômica além da Lei Bitcoin, depois de ter fechado quase todas as portas com os parceiros internacionais, entre eles sendo o principal os Estados Unidos, com uma dívida pública se aproximando do 100% do PIB, com uma escalada autoritária à beira da ditadura, o capítulo Bitcoin em El Salvador poderia estar chegando ao fim. A credibilidade no projeto Bitcoin e no presidente Bukele diante da comunidade internacional se esgotou, agora resta esperar o que vai acontecer nos próximos meses com o “Sergipe centroamericano”.
Mas, por incrível que pareça, os salvadorenhos amam ao seu presidente que ainda goza de altos índices de aprovação, de longe, dos mais altos do mundo. Assim, El Salvador poderia passar à história como um dos primeiros países a afundar depois de implementar o Bitcoin como moeda de curso legal sob a liderança de um dos presidentes mais populares do mundo.
Sobre o autor
Edwin Lima é salvadorenho residente em Amsterdam, onde trabalha como consultor na área de Business Intelligence e Inteligência Artificial. É mestre em Inteligência Artificial pela Universidade de Amsterdam (UvA) e Bacharel em Ciências da Computação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em João Pessoa, onde residiu durante sete anos.