Há um ano, em 6 de janeiro de 2021, alguns eleitores de Trump e membros da extrema-direita foram até o Capitólio, na capital americana de Washington, para tentar reverter o resultado da eleição presidencial de 2020.
Falharam nessa missão, mas o motim resultou em cinco mortes e centenas de feridos.
Fora os problemas mais alarmantes expostos naquele dia (como a confiança desgastada na democracia americana), a rebelião no Capitólio expôs o papel das criptomoedas no financiamento à extrema-direita.
Uma semana após a revolta, os dados em blockchain da Chainalysis mostraram como o bitcoin (BTC) pode ter financiado o motim no Capitólio.
Um doador francês, agora falecido, de acordo com instruções em sua carta de suicídio, deixou US$ 500 mil em bitcoin para mais de 20 carteiras separadas e pertencentes a membros da extrema-direita.
Um dos destinatários era Nick Fuentes, um supremacista branco que comandava o site neonazista The Daily Stormer. Fuentes estava presente no ataque ao Capitólio.
Ainda assim, essa doação foi meramente a ponta do iceberg do quanto a extrema-direita acolheu o financiamento com criptomoedas.
Nazistas, terroristas e criptoativos
O ano seguinte às invasões ao Capitólio produziu uma infinidade de exemplos onde criptomoedas se tornaram um alicerce de financiamento da extrema-direita.
Em julho de 2021, a Grupo de Ação Financeira Internacional (ou FATF, na sigla em inglês), uma supervisora global de crimes financeiros, publicou um relatório que documentava como grupos de extrema-direita recorrem a criptomoedas.
O relatório listou um “quem é quem” de infames extremistas, incluindo Brenton Tarrant, que realizou o tiroteio à mesquita de Christchurch em 2019.
Antes de matar 51 pessoas e deixar outras 40 feridas, Tarrant fez diversas doações em bitcoin para membros estrangeiros da extrema-direita. Um dos destinatários era Generation Identitaire, um grupo francês de extrema-direita; outro, Martin Sellner, um extremista austríaco.
O relatório do FAFT também citou Schild & Vrienden, um grupo extremista belgo, cujo nome se traduz para “Shields & Amigos”. O FAFT descobriu que o grupo triplicou seus recursos ao usar bitcoin.
Outro exemplo é Nordfront ou “Movimento de Resistência Nórdico”, que também encorajou seguidores a usarem bitcoin ou monero (XMR), uma criptomoeda com foco em privacidade que promete anonimidade total.
“Você acha que a forma como operamos nossa economia é da sua conta?”, questionou Maxim Salin, editor da revista Nordfront, à agência de notícias Associated Press em resposta a uma pergunta via e-mail.
Migrando de bitcoin para monero
Uma investigação da Associated Press (ou AP) descobriu que Andrew Anglin, fundador do The Daily Stormer, havia recebido cerca de US$ 5 milhões em bitcoin desde janeiro de 2017.
A maior doação em bitcoin a Anglin (US$ 60 mil) aconteceu em agosto de 2017, uma semana após a marcha em Charlottesville.
Em setembro de 2021, um provocador da direita nas redes sociais Douglass Mackey, que foi acusado de espalhar notícias falsas e conspiração de ameaça a eleitores, recebeu US$ 60 mil em bitcoin para financiar seus problemas judiciais.
Doações em bitcoin foram vitais a Anglin, dado o fato de que ele já havia sido banido por processadoras de cartão de crédito e do PayPal. Ele publicou um guia de como usar bitcoin, afirmando que a criptomoeda o ajudou a financiar o The Daily Stormer por quatro anos.
Mas em 2021, Anglin abandonou o bitcoin e favoreceu monero, fazendo seus seguidores adotarem a criptomoeda de privacidade.
“Cada transferência em bitcoin é publicamente visível. Geralmente, seu nome não é ligado ao endereço de uma forma direta, mas espiões de diversas organizações antiliberdade e ‘militantes’ têm recursos ilimitados para tentar conectar essas transações a nomes reais”, disse Anglin.
Com monero, acrescentou ele, “todas as transações são ocultas”.
Jaz Searby, que anteriormente liderou uma filial australiana da extremista Proud Boys (ou “Caras Orgulhosos”), também busca doações em monero para espalhar sua mensagem a “uma geração de jovens arianos”.
Se não pode contra eles, junte-se a eles
Um ano após o ataque à capital americana e quase um ano do início da presidência de Joe Biden, a extrema-direita está focada em tentar obter representação política e legítima no Congresso.
Em dezembro de 2021, Ron Watkins, considerado por muitos como a misteriosa figura “Q” por trás do fórum QAnon, pediu por doações em bitcoin para ajudar na sua corrida mal financiada ao Congresso.
Assim como a maioria dos ativistas de extrema-direita, Watkins não conseguiria financiar sua política sem o bitcoin.
“Tivemos alguns desafios por conta da cultura do cancelamento ao criarmos um financiamento tradicional, então criei uma solução inovadora que utiliza o bitcoin para arrecadação”, anunciou Watkins a seus 423 mil seguidores no Telegram.
“O propósito disso é provar aos ‘haters’ que podemos arrecadar dinheiro.”
Não são apenas os políticos de extrema-direita que estão tentando alavancar as criptomoedas.
Comentaristas conservadores, como Candace Owens e Ryan Fournier, recentemente fomentaram “moedas de direita”, incluindo uma chamada Let’s Go Brandon (LGB), que substitui o xingamento “F***-**, Joe Biden” após uma repórter ouvir errado a frase durante uma corrida da NASCAR.
“Finalmente entrei em cripto e APOSTEI TUDO nessa moeda Let’s Go Brandon. Porque #LetsgoBrandon”, tuitou Owens.
Fournier tuitou: “Agora, existe uma criptomoeda ‘Let’s Go Brandon’. Acabaram de doar US$ 30 mil para caridades de veteranos [de guerra], que é provavelmente mais do que Biden fez pelos veteranos em toda a sua carreira”.
O que isso significa para as criptomoedas?
O bitcoin está sendo usado por grupos de extrema-direita, mas também está sendo utilizado em arrecadações por candidatos Democratas, como Andrew Yang e Eric Adams. Defensores do bitcoin gostam de dizer que a tecnologia em si é apolítica.
“Privacidade e anonimidade não são ruins ou ilegais; são fundamentais às liberdades civis. O fato de uma tecnologia poder ser usada para violar a lei não significa que exista algo de errado com essa tecnologia”, explicou Marta Belcher, advogada cripto e de liberdades civis, ao Decrypt.
“Há tempos, criminosos usam dinheiro físico para cometer crimes, mas não pedimos que haja uma proibição do dinheiro como consequência e não culpamos a Ford quando um de seus carros é usado como um veículo de fuga em um roubo a um banco.”
Outros discordam.
“Minha opinião é que o bitcoin provavelmente não deveria existir neste mundo. Mas se eu desconsiderasse isso, realisticamente, o que poderia ser feito seria uma melhor implementação de sanções, no câmbio de dinheiro real por criptoativos, e melhores controles de lavagem de dinheiro”, disse Stephen Diehl, programador e grande crítico às criptos, ao Decrypt.
“Se você pode mover bilhões de dólares por aí de forma completamente privada, haverá tantos maus agentes que podem usá-las no financiamento ao terrorismo, financiamento ilícito de regimes e eu realmente não consigo ver um mundo onde isso seja algo bom.”
O xis da questão é se a privacidade e a liberdade de expressão concedidas pelas criptomoedas valem a entrada de maus agentes. Reguladores, bem como defensores lamentam a falta de ferramentas à sua disposição para reduzir esse problema.
“Também pudemos eliminar Ku Klux Klan, uma organização terrorista, da existência”, disse Beth Littrell, advogada no Southern Poverty Law Center, que auxiliou uma das vítimas de Andrew Anglin, em entrevista ao AP.
Fazer o mesmo hoje em dia, quando o financiamento com criptomoedas está envolvido, é bem mais difícil.
*Traduzido e editado por Daniela Pereira do Nascimento com autorização do Decrypt.co.