Estado e criptomoedas: rivais ou cooperadores?

Artigo debate a natureza jurídica do Bitcoin
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Nas últimas décadas, o Estado vem sofrendo ataques por vezes imperceptíveis, mas que parecem minar o conceito de soberania tal como o conhecemos. Um dos pontos que parecia imune a tais ataques era a exclusividade na emissão da moeda. Com o surgimento do Bitcoin e criptomoedas seguintes, aparentemente desafiou-se também esse poder estatal.

A ideia inicial dos cultores do Bitcoin, de se manter totalmente à margem do Estado, mostrou-se pouco a pouco inviável, pois as transações ocorrem no  mundo real, no mundo estruturado em Estados, ainda que de modo globalizado.

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É cediço que o poder de cunhar moedas, embora primitivamente disseminado também entre particulares, passou a ser concentrado nas mãos do Estado por razões histórico-factuais que desbordam do tema deste artigo. Sendo hoje o Estado detentor do poder exclusivo de cunhar moedas, o surgimento de uma moeda privada, destacada desse poder, causa perplexidade e dificulta seu enquadramento em categorias jurídicas pré-definidas.

Essa dificuldade vincula-se à novidade consistente numa “moeda privada” cuja natureza jurídica está sendo analisada ao redor do mundo. Sob o ponto de vista econômico, pode-se considerar a criptomoeda – ou o Bitcoin – como moeda, não obstante abalizadas posições contrárias a essa conclusão.

Sob o ponto de vista da Economia é preciso que um bem preencha ao menos três funções principais para ser considerado moeda, a saber: (a) meio de troca; (b) unidade de conta; e (c) reserva de valor. Uma boa parte dos economistas acredita que o Bitcoin já tenha atingido esse patamar, que tende a se acentuar na medida em que mais estabelecimentos passem a aceitar a criptomoeda como forma de pagamento.

Há inúmeros estabelecimentos ao redor do mundo que já aceitam criptomoedas em pagamento dos bens ou serviços ofertados. O problema, portanto, parece não estar na esfera econômica e sim na esfera jurídica.

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Criptomoedas e o Estado

Para o Direito, moeda é aquilo que o Estado diz ser moeda. Cada Estado tem o poder de dizer qual será sua moeda e que valor terá. O Estado é quem decide o curso forçado e o curso legal da moeda. Em outras palavras, se o Estado não chancela determinada moeda, esta não tem valor interno como moeda, embora possa tê-lo como bem de outra natureza.

Um exemplo prático pode ilustrar o problema: embora o Estado reconheça a moeda de outras nações, não se pode utilizar moeda estrangeira para pagar tributos, para quitar as obrigações com o próprio Estado. Isto só se faz através da moeda assim reconhecida pelo Estado credor. Se, em algum momento, o Estado aceitar o pagamento de tributos em outra moeda que não aquela de sua emissão exclusiva, sob o ponto de vista jurídico poderemos dizer que essa moeda assumiu de fato a natureza jurídica de moeda dentro daquele território.

Enquanto isso não acontecer, haverá circulação de moeda paralela, cuja regulamentação pode facilitar a disseminação e crescimento desse instrumento, ao contrário do que imaginam aqueles que supõem que o Estado acabaria com as criptomoedas se estas fossem reguladas.

Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça ilustra o desafio ao poder exclusivo do Estado como emissor de moeda e traz ao cenário aspectos importantes das chamadas criptomoedas em geral, e do Bitcoin, em particular. Trata-se de decisão proferida em Conflito de Competência julgado em 25.09.2020, em que se discutia se a competência para julgar alegado crime de lavagem de dinheiro com a utilização de empresas criadas para captar investimentos em criptomoedas é da Justiça Federal ou da Justiça Estadual.

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A decisão em foco, embora trate de aspecto processual, aborda pontos relativos à regulação e pontos relativos à natureza jurídica das criptomoedas. O aspecto regulatório tem sido alvo de acalorados debates, com manifestações a favor de uma regulação estatal e outras tantas contrárias a essa posição, considerando que a autorregulação das criptomoedas é suficiente para evitar conflitos entre seus usuários.

Como se sabe, as criptomoedas têm seu nascimento vinculado a uma forte aversão à regulação estatal e à ideia de uma auto governança capaz de manter o Estado afastado do fenômeno.

Zona cinzenta

A zona cinzenta em que se encontram as criptomoedas não favorece sua difusão e utilização, causando perplexidades como aquelas anotadas no julgado supra mencionado.

Ao debater a competência “para condução de inquérito policial no qual se investiga crime de lavagem de dinheiro por intermédio de abertura de empresas com o fim de captar pessoas para investir em criptomoedas (bitcoins), a fim de dissimular a origem dos recursos ilícitos advindos do tráfico de drogas”, o STJ confirmou a falta de regulação sobre o assunto, uma vez que “as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976, a fim de justificar a competência federal”.

A decisão foi no sentido de conferir à Justiça Estadual a competência para conduzir o inquérito, não obstante o fato de que toda a atividade ilícita apontasse para um crime que, em tese, poderia lesar o Sistema Financeiro Nacional, o que atrairia a competência Federal.

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A incerteza quanto à natureza jurídica das criptomoedas, em especial do Bitcoin, parece mostrar que, longe de proteger seus cultores, poderá associar às mesmas uma imagem de ilicitude que afastará aqueles eventualmente interessados em seu uso, mas temerosos de se envolver em atividades não condizentes com a legalidade.

Novidades costumam exercer fascínio, espanto, que podem atrair ou repelir o interesse, dependendo do quanto se mostrem transparentes, confiáveis e seguras. Aos adeptos do Bitcoin e das criptomoedas em geral seria mais aconselhável, ao que parece, cooperar numa parceria para a elaboração de regulação que confira maior segurança às transações com criptomoedas, sem que se burocratize ou anule os avanços obtidos pela revolucionária tecnologia associada a esse novo fenômeno.


Sobre a autora

Maria do Carmo Garcez Ghirardi é advogada. Doutora em Direito pela USP, é autora do livro “Criptomoedas – Aspectos Jurídicos”.