A imprecisão técnica de chamar tudo de “pirâmide financeira” é um problema comum, notadamente em discussões nas redes sociais e na grande mídia, que frequentemente fala sobre criptoativos de maneira superficial e errônea.
Seja por desconhecimento, seja por oportunismo, esse termo é frequentemente utilizado de forma genérica para descrever desde outros esquemas fraudulentos que tecnicamente não podem ser rotulados como “pirâmides” até modalidades de investimento de alto risco que não configuram condutas criminosas.
Contudo, para o especialista, para o investidor ou para o entusiasta desse universo, é importante ser preciso ao rotular um esquema fraudulento ou um investimento como uma pirâmide financeira (ou não). Essa situação é ainda mais delicada em se tratando de questões que se tornam objeto de discussões técnicas ou, ainda, de processos judiciais. Quando alguém usa esse termo de forma inadequada, pode-se não apenas gerar desinformação, mas também ilegalidades em face de um caso cujas características não se adequam estritamente na definição de uma pirâmide financeira.
Não bastasse, a falta de compreensão adequada das verdadeiras características de uma fraude financeira também afeta a maneira pela qual um profissional da área jurídica atuaria na defesa dos interesses de uma pessoa que foi vítima de um golpe perpetrado com criptoativos.
Questões como, por exemplo, a delimitação da competência de um caso em razão da matéria (Federal ou Estadual) ou, ainda, qual foi o crime praticado por um indivíduo (ex: estelionato ou crime contra a economia popular) trazem profundas implicações para um processo judicial e podem torná-lo inefetivo – situação que infelizmente é bastante corriqueira diante do amplo e profundo desconhecimento dos operadores do Direito sobre ativos digitais.
Para melhor compreender essa questão, cabe fazer uma breve análise do posicionamento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil, sobre as pirâmides financeiras.
O primeiro ponto importante a ser analisado é o de que o STJ entende que a estrutura fraudulenta do crime de pirâmide financeira não necessariamente se insere no rol de crimes contra o mercado de capitais, descritos na Lei n.º 6.385/1976.
Por esse motivo, inexistindo prejuízo a bens, interesses ou serviços da União, tal como é exigido pela redação do art. 109, IV e VI da Constituição Federal, mas tão somente prejuízo suportado por particulares, a competência para o processamento e julgamento seria da Justiça Estadual e não da Justiça Federal. Isso poderia, por exemplo, anular atos decisórios proferidos em um processo.
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Outra questão interessante é que Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos autos de Habeas Corpus n.º 464.608/PE, estabeleceu as diferenças entre o crime de estelionato (artigo 171 do Código Penal) e o crime de ganhos fraudulentos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas (artigo 2º, inciso IX, da Lei n.º 1.521/1951).
A distinção foi baseada na questão de se o crime foi cometido contra vítimas específicas ou não, porque, no estelionato, o bem jurídico lesado envolve o patrimônio de uma ou algumas pessoas determinadas. Assim, embora em ambos os crimes exista o meio fraudulento, no crime contra a economia popular tem-se a captação criminosa do dinheiro de um número indeterminado de vítimas, enquanto no estelionato se verifica o direcionamento da conduta a vítimas específicas.
Acontece que a pena prevista em lei para esses dois tipos de crime é distinta: enquanto a pena prevista para o crime de estelionato é de reclusão, de um a cinco anos, a pena prevista para o crime de pirâmide financeira é de detenção, de seis meses a dois anos.
Por fim, o STJ entende que há bis in idem na imputação dos crimes de estelionato e de crime contra a economia popular. “Bis in idem” é uma expressão em latim que significa literalmente “duas vezes sobre a mesma coisa”. É um princípio legal que se refere à proibição de ser julgado duas vezes pelo mesmo fato em uma jurisdição legal.
Essa proteção está codificada em muitos sistemas legais ao redor do mundo, incluindo o Brasil. A ideia é que uma vez que um indivíduo tenha sido julgado e absolvido ou condenado por um crime específico, ele não deve ser submetido a julgamento novamente pelo mesmo crime no mesmo sistema legal, evitando julgamentos repetidos e possíveis abusos do sistema legal.
Os autos foram derivados da Operação Faraó, investigação que apurou pirâmide financeira estruturada sob a aparência de negócio de apostas em sites esportivos. O Ministério Público denunciou os réus tanto por crime contra a economia popular – em virtude da especulação financeira e da falsa promessa de rendimentos fora da realidade – quanto pelo delito de estelionato – em razão do engano imposto às vítimas, que acreditavam estar investindo em bolsas de apostas estrangeiras quando, na verdade, estavam entregando seus recursos para usufruto dos empresários.
Justamente com base no entendimento anterior, o STJ decidiu que, no caso, não havia justificativa plausível para a manutenção da denúncia em relação ao estelionato, mas apenas de pirâmide financeira, sob pena de indevido bis in idem.
Sobre o autor
Pedro J. T. C. Torres é advogado sócio do escritório Sydow e Torres Advogados. Possui atuação no segmento de Blockchain, Criptoativos e Direito Penal Informático. É Mestrando em Blockchain e Ativos Digitais pela Universidade de Nicósia (Chipre), Certificado como Investigador Forense de Criptoativos pelo McAfee Institute, Certificado pela Chainalysis, Especialista em Direito dos Criptoativos e Blockchain pela Escola da Magistratura Federal do Paraná, Conselheiro do Conselho de Ativos Digitais e Blockchain da Associação Comercial do Paraná e Membro da Crypto Valley Association (Suíça).