Imagem da matéria: O Bitcoin é mesmo economicamente viável?
(Foto: Shutterstock)

E se alguém demonstrasse, com análises bem fundamentadas, que o Bitcoin tem um problema sério, não técnico, mas econômico, e que seus fundamentos não são tão sólidos quanto se acreditava?

Pois é mais ou menos isso que tenta fazer o recente artigo publicado com o instigante título de “Beyond the doomsday economics of ‘proof-of-work’ in cryptocurrencies” publicado pelo BIS (Bank for International Settlements), instituição que é muitas vezes chamada de banco central dos bancos centrais.

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O economista Raphael Auer, autor do trabalho, é razoavelmente enfático nas conclusões.

Embora elegante e respeitosamente, ele desdenha da criação do tão venerado Satoshi, afirmando que (em tradução livre) “também na era digital, é provável que o bom dinheiro permanecerá um construto social em vez de puramente tecnológico: a eficiência da troca descentralizada exclusivamente via prova de trabalho é muito menor do que pareceria à primeira vista”.

Basicamente, ele diz que, no longo prazo, os mecanismos intrínsecos ao Bitcoin, que são a tecnologia em si e os incentivos aos mineradores, não são suficientes para garantir que a rede seja confiável.

Em especial, dependendo de certas variáveis, para se proteger de um ataque de double spending, um usuário teria que aguardar um número enorme de confirmações de sua transação.  

Além disso, a análise poderia ser estendida a todas as redes baseadas em Proof of Work.

Um golpe duro, como se pode ver!

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Se você sentiu vontade de sair correndo para vender seus Bitcoins, respire fundo e acalme-se. Não há motivos para entrar em pânico precipitadamente.

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Até porque trata-se de uma análise altamente teórica, cujas consequências práticas, se existirem, provavelmente só se darão em um prazo relativamente longo.

Também é preciso entender que existem variáveis no modelo (e até fora dele) cujo comportamento futuro não é fácil de antecipar e que influenciam bastante nas previsões do trabalho.

Além disso, o próprio autor confirma que a tecnologia é útil de qualquer forma e talvez precise de certos ajustes que, por outro lado, não podem ser descartados, dado que os impactos, a princípio, são a longo prazo.

O bom é que os argumentos estão lá, objetivamente estabelecidos e qualquer um pode entrar no debate e apontar problemas.

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Ciência bem feita, é assim…

Quais são as conclusões

O artigo parte de poucas premissas para desenvolver seu argumento.

Para começar, assume-se que o mercado de mineração acaba entrando em equilíbrio. Isso significa que, em geral, o hash rate na rede aumenta e diminui de acordo com o retorno que os mineradores recebem.

Outra consideração importante é que, se houver incentivo econômico para que a rede seja atacada, alguma hora alguém o fará.

A partir dessas premissas básicas (e, portanto, pouco discutíveis) e de algumas definições e manipulações algébricas espertas (essas sim, talvez discutíveis de tão espertas!) chega-se a diversas conclusões. Todas bem desafiadoras…

Para desincentivar o ataque, o retorno dos mineradores por bloco precisa ser maior do que uma certa percentagem da soma dos valores das transações no bloco.

Trata-se de uma conclusão bem original, pois relaciona o retorno do minerador aos valores transacionados no bloco e não aos custos operacionais da atividade, como é mais comum.

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Embora exista uma percentagem acima da qual a rede está segura, definir seu valor objetivamente não é tão simples.

Algumas variáveis influenciam no cálculo. Por exemplo, a previsível queda do valor do Bitcoin após a descoberta do ataque, que é um dos fatores que desencoraja os atacantes a tentar dominar a rede.

Pode-se especular valores para as tais variáveis e avaliar o que acontece com o que realmente importa: a taxa que os mineradores precisam obter; e o tempo de espera para considerar uma transação seguramente finalizada.

Em alguns cenários, mantendo-se a prática atual de esperar por seis confirmações, o modelo prevê que seria necessário que os mineradores fossem remunerados em 8% do total negociado por bloco.

Se quisermos pagar uma taxa de apenas 0,1% dos valores transacionados por bloco, um tempo de espera seguro estaria na casa de alguns dias!  

É no mínimo curioso que estas sejam condições dignas de um negócio de emissões internacionais centralizado, como os existentes hoje em dia.

Para os mais ligados em modelagem matemática, a pior notícia é que, ao contrário do que se imaginava até agora, a probabilidade de double spending não se reduziria exponencialmente com o número de confirmações. A relação é linear.

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Mais ainda, como se sabe, por conta dos sucessivos halvings, a remuneração dos mineradores cada vez mais será dominada pelos fees.

Como estes são definidos independentemente pelo emitente de cada transação, a teoria dos jogos demonstra que cabe aplicar a previsão do dilema dos prisioneiros (ou sua versão mais dramática – a tragédia dos comuns), que prevê que a racionalidade individual nem sempre resulta em racionalidade coletiva.

Ou seja, os fees simplesmente não seriam suficientes para manter a rede segura.

Solução Off Chain

Agora pensa só: se ocorresse um ataque, há uma chance de que os mineradores se juntassem e fizessem um hard fork que, simplesmente, apagasse as transações, certo? Segundo Dr. Auer, se essa probabilidade for suficientemente alta, as chances de ataque diminuiriam muito, pois o risco não compensaria o retorno.

Mas, pera lá! Isso implicaria uma coordenação externa ao protocolo, na linha de um comitê ou de alguma instituição de controle, ou seja, uma centralização! O que pode parecer um detalhe é, na verdade, um ataque direto ao coração da filosofia do Bitcoin.

Cypherpunks em cólera pelo mundo!…

Não há como ignorar as diversas ironias aqui.

Primeiro, um artigo publicado por uma instituição que coordena instituições ao redor do mundo que conclui exatamente que uma instituição é necessária para salvar o Bitcoin! Isso não é argumento contra o artigo, claro, mas a conveniência das conclusões é desconcertante.

Também é de se destacar que o Bitcoin e as blockchains em geral sempre foram uma proposta de solução exatamente para a tragédia dos comuns, um jeito de coordenar pessoas sem a necessidade de um mecanismo humano e, por consequência, político.

Só que o autor tenta mostrar que o protocolo do Satoshi é derrotado exatamente pelo comportamento que ele pretende prevenir!

O que esperar do futuro?

Há de se esperar um pouco mais para entender melhor se a análise apresentada sobrevive ao escrutínio público, até porque há passagens discutíveis e os valores dos parâmetros precisam ser estimados com um mínimo de segurança para que se possa julgar possíveis efeitos reais.

Isso pode demorar, pois a maioria das pessoas só se preocupa mesmo é com o muito concreto (“não derrubaram o Bitcoin”) e nem liga para análises teóricas.

A boa prática, porém, recomenda manter um olho no peixe e outro no gato…

E O imponderável?

Sim, há vários caminhos possíveis ainda não analisados. Por exemplo, os efeitos da Lightning Network e de outros algoritmos como o PoS.

Há, porém, um cenário radical que sequer foi aventado.

Com a evolução da tecnologia, o custo de minerar Bitcoin pode cair tanto que todo dispositivo poderia se tornar um pequeno minerador.

Assim, talvez a mineração simplesmente não precisasse ser lucrativa, sendo sustentada pela grande massa de dispositivos espalhados pelo planeta, todos contribuindo para o seu próprio benefício global de dispor dos serviços oferecidos e formando uma rede efetivamente descentralizada e imbatível.

Novos estudos, porém, precisam avaliar a viabilidade econômica dessa configuração altamente especulativa.

É interessante pensar que diversas funções das blockchains se assemelham, em algum nível, àquelas associadas a governos: dinheiro, registros, contratos.

Num cenário desses, seria como se cada um de nós pagasse, para que essa espécie de governo digital funcionasse, um tipo muito especial de imposto: um “imposto voluntário”.

Um governo digital global voluntariamente estabelecido… Não deixa de ser uma ideia sedutora. Resta ver se é viável.

Alguns especulam, inclusive, que o plano do Satoshi era exatamente esse: nos transformar a todos em cypherpunks. Para um personagem tão misterioso quanto esse, tudo é improvável, mas nada é impossível.

Vamos dar tempo ao tempo…

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*Gladstone Arantes tem mais de 20 anos de experiência na área de TI. É líder técnico da Iniciativa Blockchain do BNDES, membro do Grupo de Estudos sobre Blockchain em Aplicações de Interesse Público do ITS e do GT Blockchain da Febraban. É doutor pela COPPE/UFRJ na área de algoritmos distribuídos


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