A arquitetura por trás do funcionamento do Bitcoin enquanto tecnologia é fascinante. Uma série de ferramentas conhecidas há anos – até mesmo décadas, no caso de algumas delas – foram combinadas de forma inédita no sistema.
Desde chaves públicas e privadas como meios seguros de se comunicar informações sensíveis (a origem e o destino do dinheiro digital, no caso do protocolo Bitcoin) até o uso de funções criptográficas de hashing com o intuito de checar a integridade e a sincronia entre os dados armazenados de forma descentralizada nos computadores que integram a rede.
Tudo foi muito bem pensado e parece se encaixar perfeitamente. Prova disso é a resiliência do Bitcoin, o qual já opera ininterruptamente desde 2009 sem a ocorrência de qualquer grande falha sistêmica na tecnologia que o mantém.
Entretanto, com a vantagem de analisar o Bitcoin agora que ele já deu/está dando certo, por assim dizer, um questionamento permanece: seria a tecnologia o único fator de grande relevância para seu sucesso?
Indo além, mesmo se concluímos que existe, na verdade, uma combinação de múltiplos fatores nesse sentido, a forma como opera a tecnologia ainda assim poderia ser considerada o mais importante deles?
O pensamento de Satoshi Nakamoto
Embora uma resposta definitiva a essa pergunta provavelmente só possa ser encontrada com o passar de mais alguns anos, é importante salientar que, ao criar o sistema, Satoshi Nakamoto demonstrou uma invejável compreensão não apenas de criptografia, mas também dos incentivos econômicos que regem a cooperação entre diferentes indivíduos.
Em fevereiro de 2009, Satoshi enviou a seguinte mensagem por meio do fórum BitcoinTalk (em tradução livre):
“Ao invés de ter a uma mudança na oferta [de bitcoins] para que o valor permaneça o mesmo, a oferta [de bitcoins] é pré-determinada e é seu valor que oscila. Na medida em que o número de usuários cresce, o valor de um bitcoin aumenta. Isso carrega consigo o potencial para um círculo virtuoso no qual se o número de usuários [da rede Bitcoin] aumenta o valor de 1 bitcoin aumenta”.
Em 2010, também por meio de uma discussão no fórum BitcoinTalk, Satoshi evidencia as vantagens que a descentralização do sistema traz, permitindo o processamento adequado das transações, cuja prioridade é definida através de um sistema auto-regulável de taxas pagas pelos usuários:
“If you’re sad about paying (a transaction) fee, you could always turn the tables and run a node yourself and maybe someday rake in a 0.44 fee yourself.”
Satoshi está dizendo que, na forma como pensou originalmente o sistema, certa liberdade é mantida para que um indivíduo se alterne entre as posições de simples usuário ou minerador da rede. Podendo em alguns momentos pagar taxas e em outras circunstâncias recebê-las, o que assegura uma oscilação próxima de um equilíbrio-ótimo no valor a ser pago para que uma transação fosse rapidamente confirmada.
Os incentivos econômicos
A beleza de tudo isso reside no fato de que, além do processo ser significativamente mais descentralizado do que em outros sistemas de pagamentos – com cada minerador podendo definir muitas das preferências de seu nó da rede independente do que foi configurado pelos demais – a única forma de remuneração por esse trabalho é em bitcoins (recebidos por meio de taxas e da emissão controlada e conhecida de novos bitcoins).
Esse último fator gera, inclusive, um sentido para que sejam incluídas até mesmo transações sem taxa, mesmo que de forma não-prioritária. Como se sabe, no Bitcoin a escassez é um dado pré-programado: nunca existirão mais do que 21 milhões de bitcoins. Isso faz com que a principal e mais legítima forma de aumentar o valor do bitcoin a longo prazo é fazer do sistema, e consequentemente de uma unidade de bitcoin, algo mais útil à sociedade em geral.
O desafio da escalabilidade
Naturalmente, as questões de escalabilidade perpassam muitas das discussões e implementações atuais, a exemplo da Lightning Network e do fork Bitcoin Cash. É interessante enfatizar, contudo, que Satoshi embutiu deliberadamente no desenho econômico do protocolo Bitcoin um significativo incentivo para que os mineradores estejam sempre alinhados com a preservação da rede e de sua usabilidade.
Por parte dos mineradores, nesse contexto, não fazer isso num sistema que é descentralizado, abriria a possibilidade de que um usuário visse nesse cenário a possibilidade de integrar o mercado de mineração, operar nele com maior eficiência e obter taxas e novos Bitcoins como recompensa. Isso tornaria mais difícil e mais custosa a mineração para os mineradores de então.
Certamente, passados alguns anos, a rede não é tão descentralizada quanto Satoshi ambicionava durante os anos de 2009 e 2010 enquanto esteve ativo no desenvolvimento do sistema, este ainda em sua infância. De todo modo, todo o processo descrito até aqui demonstra uma clara preocupação com a dimensão humana e social do protocolo, cujas variáveis necessárias a seu bom funcionamento parecem além da dimensão técnica pura e simples.
Satoshi Nakamoto parece ter refletido sempre com muito afinco na “teoria dos jogos” por trás de todo nova questão que surgia. Embora o genial criador do sistema não necessariamente esteve ou vá estar certo em tudo o que fez ou orientou, essa parece ter sido uma valiosa lição que surgiu de seu processo criador.
É provável que, pensando em seu sucesso, futuras atualizações no sistema tenham que levar em conta o peso desses fatores, fato evidenciado nos últimos meses pela ascensão de uma nova “disciplina” dentro desse sistema: a criptoeconomia. Ou seja, o estudo de sistemas, dos quais o Bitcoin é o pioneiro, cujo funcionamento e a segurança se dão a partir da combinação entre ferramentas da criptografia aplicada e conceitos oriundos da teoria dos jogos.